28 de março de 2019

Hilda Hilst: "Compaixão também é política"


Já sei que tá cheio de gente sofrendo, velhos, crianças, mulheres, nordestinos, favelados, mas é preciso também fazer alguma coisa urgente e batalhar contra a crueldade em relação aos animais. Há algum tempo ouvi dizer que serravam cavalos vivos porque a dor fazia com que o couro ficasse macio... Fui vomitar ventando no meu pinico de barro. E depois comecei com aquilo tudo que vocês já sabem, a hora dos tamancos. Bem, continuando. Ouvi emocionada, há alguns dias, o relato de uma admirável jovem mulher, Mara Thereza, que há anos vem salvando cavalos doentes e abandonados, ou atados às carroças, com os cascos em carne viva, ou corroídos de sarna e de feridas, e aí ela, Mara, até pede para comprar, mas o dono diz: inda tá bonzinho, dona, veve mais uns dia trabaiando... E o bicho todo esfolado, sangrando. Eh... gente "simpres" e boa!

Em 1964, quando vim para Campinas, um amigo meu quis me levar à Hípica. Fui, achei tudo lindo até que me deparei com uma égua e sua cria num matagal ao lado. A égua cheia de carrapatos, doentíssima, e a cria também. Mas o que é isso? perguntei estarrecida. Explicação: a dona largou as duas aqui, não pagou o aluguel das baias e sumiu. Mas isso é um absurdo, eu disse. Vocês têm que tratar dos animais! Mas, não dá não, dona, não pagando não dá... De início, fiquei aos prantos, só olhando, depois em seguidinha, furiosa, perguntei se me vendiam as duas. Claro, deram graças a Deus, e graças a Deus minha mãe tinha uma fazenda e chamei um caminhão e levei-as, mas só a égua  foi salva porque a cria já estava muito mal. Alguns, que me viram comprar, sorriram e me chamaram de louca. Estou acostumada com tal rótulo e antes louca do que pérfida, nojenta e gélida, pactuando com a maioria dos humanos. Sou louca de compaixão sim, e é pena que eu não tenha poder nem dinheiro para salvar os animais das mãos dos humanos.

Se algum de vocês, leitores, puder ajudar de alguma maneira Mara Thereza, essa admirável jovem mulher, ou aceitando um sofrido animal em sua chácara ou no seu terreno cercado, ou às vezes emprestando um caminhão para tirar o animal de algum inferno ou do carrasco, escrevam para este jornal, aos meus cuidados, e os competentes façam leis, senhores, leis severas para os carrascos de animais, há carrascos em demasia no mundo, há também todo o meu asco e o Pessoa dizendo mais ou menos isso: hoje vomitei o mundo na pia. Eu também. Com licença. Vou indo.

Sobre o vosso jazigo
- Homem político - 
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens. 
Sobre os vossos filhos
- Homem político - 
A desventura do vosso nome. 

(segunda-feira, 19 de abril de 1993)

Hilda Hilst
em Cascos & carícias & outras crônicas
São Paulo : Globo, 2007.

(Cascos & carícias & outras crônicas é uma seleção de crônicas que Hilda Hilst produziu para o jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995) 

16 comentários:

  1. Muito interessante, gostei do que li.
    Um abraço e continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  2. Um texto muitíssimo impressionante, especialmente para quem ama os animais.

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  3. Quem não se revolta ao ver animais maltratados e assim desrespeitados? Uma pena mesmo e espero a consciência chegue a quem ainda falte nesse sentido! abraços, tudo de bom,chica

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  4. Anônimo28/3/19

    Subscrevo na totalidade.

    "A grandeza de um país e seu progresso podem ser medidos pela maneira como trata seus animais,"

    Mahatma Gandhi

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  5. Amo os animais. Tenho um cão e dois gatos que adoro.
    Gostei muito do tema
    .
    Beijo

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  6. Um excelente texto! Gostei de ler.
    Bjs

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  7. Denunciar algo tan duro como el maltrato a los animales deberíamos hacerlo más a menudo
    No puedo casi ni leerlo porque mi sensibilidad no me deja,pero recuerdo que mi madre me contó en una ocasión,que al perro de su hermano,osea,mi tío,le dieron en el pueblo un hachazo en la cabeza
    Fué el veterinario y le dijo que quien es capaz de hacer eso a un animal,también lo podía hacer con una persona
    Creo que con esto ya digo todo
    Mi gatito es blanco y se llama Algodón .Cómo pensar que le pueden hacer daño!!
    Gracias por traer esta llamada a la gente ,a ver si aprende
    Besucos

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  8. Em Portugal já é considerado crime os maus tratos aos animais! Muito triste que haja gente capaz de fazer essas coisas aos animais. Beijinhos
    --
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  9. Olá Ulisses, td bem?
    É triste saber que o ser humano é o pior tipo de animal, que não tem compaixão com os demais seres vivos, que não cuidam, não alimentam, não deixam em paz animais selvagens, vivem a caça por diversão ou dinheiro. O ser humano é a pior espécie da terra, a única cruel e que não se importa com a dor alheia. O que me deixa menos chateado é saber que muitas pessoas ajudam a salvar muitos animais de seus tristes fins. Gostei do texto.
    Abs

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  10. Interesante texto y que linda mujer con un gran corazón y sentimiento hacia los animales indefensos.... Saludos amigo.

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  11. A humanidade desumanizou-se literalmente, nem os seus iguais nem os animais. Nada! Um egoísmo feroz!
    Bom fim de semana.
    Beijo

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  12. Magnifica partilha, Ulisses!...
    Adorei o texto... daqueles que nos mostram a realidade, tal como ela se apresenta... sem flores... e com as suas dores!...
    Beijinho! Bom domingo, e um óptimo mês de Abril!
    Ana

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  13. Me gustan los animales amigo, y no soporto que los maltraten . Adoptamos tres gatos porque no podían cuidarlos. Hoy viven felices en nuestro huerto.
    Un abrazo.

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  14. Um texto muito bom. Tratar mal os animais é uma crueldade. Não conhecia esta crónica de Hilda Hilst. Só conheço dela alguma poesia.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  15. Realmente é melhor ser chamado de louco!
    Aqui na minha cidade, Petrópolis, havia uma luta para acabar com as charretes puxadas por cavalos. Os animais sofriam horrores e alguns caíam desmaiados n meio da rua, sobre os paralelepípedos, assustados entre os carros e ônibus os animais seguiam transportando turistas alheios ao sofrimentos dos pobres animais debaixo de sol ou chuva. Finalmente houve um plebiscito em outubro passado e o povo optou pelo fim das charretes com tração animal. No entanto, só agora o prefeito assinou a lei e encerrou as atividades dos charreteiros, isso porque na semana passada mais um animal caiu na volta pra casa, que deve ser distante uns 15 Km do local onde os cavalos ficavam parados, na frente do Museu Imperial.
    O pior é que tem um forte movimento contrário, que não se conforma com o fim das Vitórias, como são chamadas as charretes.
    Um abraço, meu amigo!

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  16. Não percebo quem abandona os animais.
    Ter um animal acarreta uma enorme responsabilidade que deve ser encarada com seriedade.
    Abraço

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