17 de fevereiro de 2020

redes sociais, selfies e os tempos de kardashianização

(Mona Lisa Kardashian)


embora não haja consenso sobre o impacto das redes sociais em nossas vidas e comportamentos, alguns estudos realizados por diferentes universidades do mundo concluíram, ao longo dos últimos anos, que se manter distante das redes sociais reduz sentimentos negativos e melhora nosso bem-estar. muito já foi escrito sobre a inveja, por exemplo, que uns acabam sentindo de outros, mas até hoje nunca vi alguma pesquisa ou usuário de alguma das redes sociais comentar sobre a inveja que muitas pessoas acabam sentindo até de si mesmas, inclusive, e porque provavelmente muitas das pessoas sentem, mas nem se dão conta. 

tive apenas duas breves experiências com as redes sociais: a primeira foi com o extinto Orkut, muitos anos atrás, durante alguns poucos meses, e a segunda foi, algum tempo depois (por teimosia), com o Facebook, onde mantive um perfil por apenas poucos meses também, criado em 2010, ou seja, dez anos atrás. de lá para cá, em nenhum momento pensei em voltar a fazer parte de alguma rede social, manter distância desse universo foi uma decisão definitiva.

reconheço as vantagens que as redes sociais podem nos proporcionar: reencontrar pessoas do passado que, de algum modo, foram especiais nas nossas vidas e, por que não?, podem se tornar especiais de um novo modo no presente, conhecer novas pessoas, ainda que, na maioria dos casos, isso aconteça muito superficialmente, compartilhar e absorver ideias (as que possam acrescentar algo no mínimo interessante em nossas vidas), divulgar o próprio trabalho, etc. são muitas as vantagens, mas, na minha percepção, são bem maiores as desvantagens, porque o que há de negativo se torna, cedo ou tarde, mais gritante. 

não podemos generalizar, afinal as generalizações são sempre ignorantes e é certo que há pessoas que utilizam as redes sociais de forma benéfica ou sensata, porque essas não estão lá somente para nutrir a flor do próprio umbigo, mas a maioria muitas vezes se mostra, ou se revela, na verdade, da pior maneira possível e, o que é ainda pior, parece não perceber.

porém, não são apenas os outros que, através de suas vidas editadas em fotografias de si mesmos, agem como se tivessem uma vida aparentemente perfeita. nós mesmos, também, muitas vezes acabamos agindo dessa forma, como se entrássemos em um redemoinho de autossabotagem que não é aquele onde apenas deixamos de fazer coisas produtivas por nós mesmos, mas onde, na verdade, passamos a fazer tudo em troca da aprovação alheia, como se a nossa vida se tornasse uma novela para uma plateia virtual onde os espectadores diariamente nos aplaudem e nos "curtem" apenas porque esperam, na maioria das vezes, ser aplaudidos e curtidos em suas novelas também - e ingênuas são as pessoas que pensam que esses outros se importam realmente com a vida delas.

é fato que, de um modo ou de outro, representamos certos tipos de papéis sociais, nas redes e na vida fora delas, mas também é fato que através das redes sociais é bem mais simples para qualquer pessoa aparentar ser o que quiser e, dessa forma, o risco de acabar sentindo inveja até de si mesma, ainda que sem se dar conta, é grande:

olhamos para as nossas próprias fotografias postadas nas redes sociais e pensamos: eu gostaria de ser exatamente como eu estou fazendo de conta que sou ali para todas as outras pessoas verem, eu gostaria de me olhar no espelho, quando estou longe das plateias virtuais, e enxergar exatamente a mesma imagem que compartilho nas fotografias com filtro, photoshop ou escondendo os detalhes do meu rosto e corpo que eu julgo serem defeitos, eu gostaria de ser sempre tão feliz quanto as pessoas devem achar que sou através das imagens que compartilho, do meu rosto sorridente nos lugares por onde passo, etc.

hoje em dia, se formos aos lugares mais bonitos do mundo (ou em qualquer lugar), provavelmente veremos pessoas fazendo registros fotográficos... de si mesmas. não basta mais vivermos simplesmente, do modo que quisermos, seja lá como for, não basta mais existirmos, agora é preciso provar diariamente que existimos, as fotografias de nós mesmos dão para os outros a autenticação, ainda que ilusória, de que somos sempre produtivos, sempre felizes (a tal "positividade tóxica"), saudáveis - e ao mesmo tempo sem enxergar que desenvolver um vício em se exibir diariamente em uma rede social, tornando-se escravo(a) da aprovação alheia, pode ser algo tão nocivo para a própria mente quanto usar constantemente qualquer tipo de droga lícita ou ilícita.

não vejo, sinceramente, muita diferença entre uma pessoa que constantemente se embriaga com alguma bebiba alcoólica até o ponto de começar a ser estúpida sem se dar conta, por exemplo, e uma pessoa que usa uma rede social demonstrando estar viciada em mendigar atenção e massagem no ego diariamente. na verdade, essa pessoa, em um caso assim, não está simplesmente usando uma rede social, está também sendo usada por ela.

em um mundo de pessoas com os olhares atualmente tão direcionados para si mesmas, difícil é ver quem consiga registrar, apenas com as retinas ou mesmo com uma câmera fotográfica, somente o que está ao redor, o que existe para além dos nossos umbigos. mas a carência e a necessidade de autoafirmação falam mais alto, por isso o número de "selfies" compartilhadas nas redes sociais costuma ser bem maior do que o número de outros tipos de fotografias. 


algum tempo atrás, Kim Kardashian compartilhou em seu perfil no Instagram uma "selfie" em que ela estava nua (com tarjas nas "partes íntimas") na frente de um espelho (apenas mais uma de suas milhares de "selfies", exatamente como fazem tantas e tantas outras pessoas que diariamente compartilham "selfies" pensando, provavelmente, que seus seguidores vão achar que há muita diferença entre elas). a atriz Bette Midler, que é conhecida pelo seu bom humor, comentou em seu perfil no Twitter:

"Se Kim Kardashian quer que vejamos uma parte dela que nunca vimos, ela vai ter que engolir a câmera."

cada um que se exponha da maneira que quiser, obviamente (cada um oferece, afinal, o que tem para oferecer), mesmo que seja uma exposição em que já não há mais nenhuma novidade para ninguém, mas, como diz o provérbio, quem está na chuva é para se molhar, ou seja, é preciso arcar com as consequências de uma exposição desenfreada, quem não quer ler ou ouvir nenhum tipo de crítica negativa ou ironia, que vá plantar alface na solidão de uma horta e não se expor em uma rede social aberta para o mundo inteiro ver.

quanto a mim, sempre gostei de fotografias, desde quando só era possível fazer registros fotográficos analógicos, desde quando as fotografias serviam apenas como registros para nós mesmos, inclusive tenho uma caixa com muitas fotografias guardadas em álbuns. mas aqui mesmo, neste blog (que eu não sei até quando pretendo manter, mas que mantenho ainda somente por ser um espaço mais específico para a publicação de poemas e outros textos, inclusive de outros autores, para pessoas que eu sei que terão verdadeiro interesse em ler e que não buscam apenas a superficialidade de meia dúzia de palavras como legenda para selfies ou outros tipos de fotografias), de vez em quando compartilho registros fotográficos feitos por mim, da natureza, de bichos, de cenas urbanas, grafites e qualquer coisa que contenha algum significado poético. gosto, também, de algumas selfies que vejo pelos mares da internet, algumas são imagens bonitas, interessantes.

não gosto é quando há apenas o raso discurso do "#goodvibesonly" ou "#shinyhappypeople", até porque quem mostra e espera ver nos outros apenas as luzes, o lado iluminado, geralmente se torna uma pessoa com pouca capacidade empática e, como consequência, ignora a realidade das próprias sombras e das sombras que há ao seu redor, os horrores que acontecem diariamente pelo mundo. ainda pior é quando essa falta de sensibilidade aliada ao vício de ter que estar sempre fotografando tudo, em qualquer momento, em qualquer lugar, faz com que certas pessoas percam a mínima sensatez e acabem agindo como urubus diante da carniça - embora seja uma enorme injustiça, para os urubus, compará-los com essas pessoas.


não é uma novidade o ser humano sentir prazer em observar a vida alheia (inclusive a desgraça alheia) e, principalmente, sentir-se como o centro do Universo, das atenções (desde um princípio antropocêntrico que tem levado à destruição inconsequente do meio ambiente, inclusive). mas agora, com as redes sociais, esse comportamento, de se expor tanto quanto de observar, tornou-se ainda mais simples e apenas mais evidente. eu, inclusive, poderia fazer parte das redes sociais, caso quisesse ampliar o número de leitores dos meus poemas e outros textos, por exemplo, afinal o desejo de me expressar através das palavras escritas é o que há de mais essencial em mim, desde muito tempo antes da existência das redes sociais, mas eu não me meço por números, inclusive opto, mesmo através deste blog, por não manter o espaço destinado aos "seguidores".

redes sociais servem principalmente para quem gosta de se expor e observar a vida alheia diariamente, ou, no mínimo, frequentemente, o que não é o meu caso, pois além de eu não ver sentido e não ter nenhuma necessidade em ficar compartilhando o que quer que seja diariamente, também não tenho o menor interesse em ficar dia após dia vendo o que os outros estão fazendo, pensando, comendo, bebendo, comprando, nem mesmo em relação aos meus amigos, familiares ou conhecidos.

mesmo no blog às vezes passo dias sem entrar ou sem compartilhar algum conteúdo, às vezes semanas. de qualquer modo, penso que se for para se expor, seja lá onde for e independente da frequência, a exposição só faz sentido, para mim, se for para levantar questionamentos, por exemplo, ou provocar possibilidades de tomadas de consciência sobre o mundo, sobre a vida, inclusive e especialmente a vida dos bichos e, principalmente, se for para acrescentar algo de poesia, de mais artístico no mundo. do contrário, se for para ficar apenas nutrindo a flor do umbigo ou como gente mexeriqueira que fica diariamente espiando a vida alheia na janela, não me interessa. mas, como disse anos atrás José Ângelo Gaiarsa, "a fofoca governa o mundo". o ser humano, com as redes sociais, entrou em uma "egotrip" ainda mais estranha, agora querendo justificar, como se houvesse uma conotação positiva, a seguinte velha máxima: falem bem ou falem mal, mas falem de mim.

sobre todos nós, e para todos nós, principalmente para quando estamos, ou estivermos, com nossos egos muito inflados, pensando que somos, para os outros, muito mais importantes e imprescindíveis do que o que realmente somos, dois trechos de um poema de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa):

"(...) De que te serve
o quadro sucessivo
das imagens externas
A que chamamos
o mundo?
A cinematografia
das horas representadas
Por actores de convenções
e poses determinadas,
O circo policromo do nosso
dinamismo sem fim?
De que te serve
o teu mundo interior
que desconheces? (...)

(...) Fazes falta? Ó sombra fútil
chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes
falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti. (...)"


ou, de um modo mais direto, mas não menos poético, uma frase de uma música que ouvi dias atrás: "Ninguém neste mundo é porra nenhuma."

2 de fevereiro de 2020

el cielo está dentro de mí

(fim de tarde) 


"(...) el cielo está dentro de uno
y está el infierno también
el alma escribe sus libros
pero ninguno los lee

a veces uno camina
entre la sombra y la luz
en la cara la sonrisa
y en el corazón la cruz

búscalo al cielo en ti mismo
que allí lo vas a encontrar
pero no es fácil hallarlo
pues hay mucho que luchar

por caminos solitarios
yo me puse a caminar
por fuera nada buscaba
pero por dentro quizás."


(Pablo del Cerro /Atahualpa Yupanqui)