29 de março de 2020

poesia em tempos de pandemia


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poemas de Murilo Mendes (1901 - 1975)

26 de março de 2020

Sairemos da caverna num dia de sol



por Ayrton Centeno (do Brasil de Fato) 


Uma das hipóteses para a gênese do coronavírus é que ele tenha se originado no fundo de uma caverna na China. Ali, em dado instante, talvez propiciado pela presença devastadora do homem no seu ataque à natureza, o inimigo invisível que ameaça o planeta saltou do morcego para a humanidade. 

É uma cena repetida ao longo da História, sempre com a criatura humana atraída pelo desconhecido. Foi assim com o HIV, originalmente presente em chimpanzés; com o sarampo, possível legado da era inicial da pecuária bovina; e com o ebola, novamente oriundo dos morcegos. 

Nas mais de mil espécies de morcegos, o coronavírus sobrevive sem destruir seu hospedeiro, dotado de vigoroso sistema imunológico. Porém, ao deixar a caverna e trocar de anfitrião, diante de uma barreira imunológica bem mais frágil, causa estragos enormes e, eventualmente, fatais. É o que está acontecendo no Brasil em 2020, com consequências ainda em suspenso, mas com expectativas péssimas. 

Em algum ponto do passado, também nos sentimos atraídos pela caverna. Certo dia, quisemos explorá-la. É fato que houve muitas advertências. Vozes nos avisaram de que algo nos aguardava nas trevas. Não acreditamos. Os donos da verdade instalados nos seus pedestais também nada nos informaram. Limitaram-se a observar, alguns poucos, que talvez a caverna não fosse tão acolhedora. Mas emendaram que permanecer na claridade, do lado de fora da cova, também seria algo arriscado demais. Então, entramos. 

Mal demos o primeiro passo e um segundo vírus já navegava em nosso sangue. Ao contrário do corona, que prefere o aparelho respiratório, o intruso dentro de nós ataca nossa empatia, o dom da compaixão, de se enxergar o próximo. Exacerba sentimentos como o egoísmo, a cobiça, o ódio. Estimula e justifica a prática da fraude e da violência contra os mais fracos. Repele a ciência, louva a superstição e exalta a morte. Também agride de forma brutal a capacidade cognitiva do infectado, que nega a realidade, reagindo com fúria frente a tudo que ouse questionar suas convicções. 

Em 2018, ano do grande surto, a maior parte da população sofreu esse contágio. Tornou-se adicta da mentira que consumiu, celebrou e disseminou. A ação virótica exasperou fantasias, sonhos de exaltação mitológica. 

Dois anos depois, quando, aos trancos e barrancos, a nação enfrenta a covid-19, o vírus daquela outra caverna sofreu um choque de realidade. Baixou sua crista, achatou sua curva que se inclina para a parte baixa do gráfico. Mas continua ativo. 

Nossa sina é combater e derrotar ambos. Se a localização da suposta caverna chinesa é imprecisa, sabemos perfeitamente onde se situa a outra. Reside em algum lugar dentro de nós, naquele porão sinistro e íntimo onde ocultávamos nosso horror particular e havíamos acorrentados nossos monstros, agora libertados. 

Mas os dois vírus possuem o mesmo ponto fraco. Exposto ao sol, o coronavírus resiste algum tempo e morre. Aliado da escuridão, o outro vírus também sucumbe. Não suporta a claridade que permite melhor ver, distinguir e julgar as coisas. Primeiro teremos que vencer o corona. Depois, virá a vez do segundo vírus. Será uma tarefa longa, em que nos caberá produzir aquela manhã esperada, plena de sol. É ela que trará seu brilho intenso para fulminar e devolver o inimigo à caverna de onde nunca deveria ter saído. 

21 de março de 2020

hoje



Enquanto faço o verso,
tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza,
e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente
alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço,
de tão vasto
Não cabe no meu canto.


Hilda Hilst
"Poemas aos homens do nosso tempo",
in Júbilo, memória, noviciado da paixão.
2. ed. São Paulo, Globo, 2001. 

16 de março de 2020

Irresponsável, Bolsonaro ignora coronavírus e brinca com saúde da população

(Movimentação durante manifestação pró-Bolsonaro
na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, dia 15
Imagem: Saulo Angelo/ Futura Press/ Estadão Conteúdo)


por Leonardo Sakamoto (do UOL) 


Demonstrando que sua agenda política pessoal é maior do que sua preocupação com a saúde da população, o presidente Jair Bolsonaro encontrou fãs, trocou apertos de mão, segurou celulares para selfies e elogiou que seus seguidores tenham ido aos atos contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, realizados neste domingo (15). Profissionais de saúde têm, desesperadamente, pedido às pessoas que evitem contato social a fim de retardar a pandemia de coronavírus.

Passando por cima das recomendações do próprio Ministério da Saúde, que pede a todos que tenham ido ao exterior que fiquem sete dias em suas residências, ele deixou o isolamento e foi confraternizar com seus eleitores.

O presidente da República torna-se, dessa forma, inimigo do próprio sistema de saúde do país, que tenta explicar às pessoas que elas devem evitar aglomerações a fim de reduzir a velocidade da infecção.

Tenta-se impedir um "tsunami" de gente procurando postos e unidades básicas de saúde e hospitais, tornando impossível atender aos afetados pelo Covid-19 e, ao mesmo tempo, cuidar de pacientes de outras doenças e emergências. Se os infectados vierem em "prestações", o sistema ficará menos sobrecarregado e não será necessário escolher quem será atendido ou não. Ou seja, no limite, quem vive e quem morre.

Bolsonaro prova mais uma vez que pensa somente em si, em sua família e no naco de seus fãs que pertencem à classe mais abastada. Pois se forem infectados, terão o melhor tratamento de saúde do país à sua disposição. Coisa que não vai se acontecer com quem depende do SUS, com leitos e respiradores em número insuficiente para fazer frente à crise.

O coronavírus não tem preferência por pobres ou ricos, mas o Brasil, sim, ostentando um déficit de estrutura de atendimento no sistema público, que é responsabilidade de todos os governos até agora - inclusive o dele.

"As consequências do ato de Bolsonaro hoje vão além do ataque à democracia. Trata-se de uma irresponsabilidade sem tamanho, uma ameaça à vida das pessoas, expostas a um vírus que tem matado milhares ao redor do mundo", afirmou o líder do PSB na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (RJ) em nota à imprensa. "É isso que acontece quando se governa pensando em concentrar e manter seu próprio poder".

Ao sair à rua, o presidente também parece rir da cara de seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem sido diligente e responsável em meio ao caos. Sua pasta avisou que se não forem tomadas medidas para restringir o contato social, casos vão dobrar a cada três dias.

Ao menos, seis pessoas que estavam em um evento que reuniu as comitivas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, na Flórida, já deram positivo para coronavírus. O primeiro teste do mandatário brasileiro, segundo ele mesmo, deu negativo - mesmo resultado de seu colega norte-americano. Mas a infecção pode produzir falsos negativos, ainda mais na fase em que está assintomática. Por isso, ele foi recomendado a monitorar a saúde e estava em isolamento.

O presidente, que chegou a conclamar as pessoas a irem às ruas para o 15 de março, acabou fazendo um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV recomendando que os organizadores adiassem as manifestações com a ampliação dos casos de coronavírus. Usou até máscara cirúrgica em uma live no Facebook, enquanto não saía o resultado do seu exame, e também desincentivou a ida ao evento. Agora, vai à rua abraçar pessoas, dar apoio a aglomerações e mau exemplo.

Toda manifestação democrática que não peça o fechamento de instituições ou a prisão de deputados, senadores e ministros do STF tem o direito de existir. O problema é que os atos foram convocados com base na premissa no, agora icônico, "foda-se" que o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, sugeriu que o presidente mandasse ao Congresso.

Em um momento em que a sociedade faz um esforço para fechar as portas das escolas, universidades, shows, eventos esportivos, cultos religiosos, e se recolher, o presidente vem à rua para apoiar que seus fãs se juntem a fim de gritar "mito". Pode ter ajudado a rifar, dessa forma, a qualidade de vida de muitos que vão passar a achar que estamos vivendo a normalidade sanitária no Brasil e repetir seu exemplo.

O governante racional assume uma posição que nem é de histeria, nem de descaso neste momento. Bolsonaro foi além,  ele objetivamente está colocando a sociedade em risco. Merece o nosso reconhecimento. Após ser o primeiro presidente no mundo a chamar uma pandemia mortal de "fantasia", agora se torna o primeiro ao agir contra o seu combate.