17 de setembro de 2018

rumo

não bordo com lantejoulas
as pontas dos meus pés
não penduro constelações
nas minhas extremidades
para continuar a viagem
nesta esfera rutilante
(rotunda a girar)
sob minha carne fraca
não bebo da água
de um deus do céu
nem apascento demônios
à luz dos raios das manhãs
só carrego mais ao fundo
a poeira das sujeiras
dos submundos das bagagens.

16 de setembro de 2018

misturado aos ventos

disseram-me:
abandone velhas questões
(um vestir roupas novas
sobre o igual de dentro)
abandone livros
de páginas amarelas

para expirar
versos antigos
que inspiram
encontre respostas
através do que nasce
como palavras novas
verbos jamais ouvidos

(todas as coisas
trago vivas em mim dentro
como se nunca datadas)

interessa-me mais:
o que resiste além da matéria
um tipo de fotografia
livre do tempo
em preto e branco
sépia ou mais colorida
como um papel já visto
que não se destina
ao engavetamento.




14 de setembro de 2018

no jornal Zero Hora de hoje


júbilo, memória, noviciado da paixão


Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite,
que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti.
E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo,
de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão
do escondido das gentes
Descobre além da aparência,
é antes de tudo
LIVRE, e por isso conhece.
Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim,
eu te peço:
Escuta-me. Olha-me.
Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.


Poema VI - "Poemas aos homens do nosso tempo"
Hilda Hilst em Júbilo, memória, noviciado da paixão.
Organização Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2001

distância

daí me ouves
através do Atlântico
pela costa que separa
todos os teus relevos
do meu corpo mais ao Sul

(planaltos
e planícies
sob o céu
desta noite)

e dentro do meu peito
um grito irrefreado
a estourar nossas estrelas.

gataria


no vão daquela hora
em que a noite desaba
sobre o dia enegrecido
resta um outro segundo
para o tempo do mundo
guardar todos vocês
noutra madrugada
no meio do nada
pelas ruas vazias
encharcadas de sereno
sobre alguns gramados
em todos os telhados
um deles é branco
outro é preto
todos pardos.

12 de setembro de 2018

inverno

frio na manhã. tu és como esta chuva de inverno. parece que um deus (solúvel) manda águas para que eu te sinta. estás aqui, sobre mim e dentro (estado líquido), sempre que a chuva é capaz de formar as grandes nuvens que vão e voltam, aves, revoadas. hoje, eu te vejo ao fechar os olhos (melhor fotografia é a que as retinas guardam), ou quando chove, sobre mim e dentro - natureza que me invade.

11 de setembro de 2018

egotrip

em tempos de Facebook e Instagram,
um amigo é para te ver nutrir-curtir
a flor do teu próprio umbigo -
amizade de verdade é coisa démodé.

paradeiros



alguns caminhos são tortuosos:
levamo-nos (ou nos trazemos)
com lentidão ou urgência

de tão labiríntica a vida,
nós nem sempre sabemos
onde (e quando) vamos parar.


(imagem: Aydin Büyüktas)

9 de setembro de 2018

das constatações

invejo mesmo é o meu cachorro:
sem nem sequer ter a suposição
de ser chamado de cachorro,
só deita e rola e sabe a que veio
sem se perguntar de onde e por quê.

gozação

palavrão é condomínio -
o resto há de ser conduta
que jamais ganhará multa.

horizontes


lá onde áfricas
escondem-se
vejo apenas
uma linha
a separar
a água de lá
da água de cá
mas se o traço
da noite escura
essa linha pinta
- agora retinta
já não posso
enxergar
águas de azuis
diferentes
misturam-se
pretas-azuladas
fundem-se
em um mesmo mar.


(imagem: Mehmet Ozgur)

8 de setembro de 2018

disco rígido


não digo tudo o que penso
não escrevo tudo o que sinto
não lembro de tudo o que sonho

tanta coisa existe
dentro das madrugadas
tantos pensamentos
dentro dos pensamentos
ao acordar,
um fiapo de noite espeta os olhos
(os sonhos desprendendo-se
das pálpebras)

quase nunca a minha mão
acompanha a velocidade
dos meus pensamentos
pensamentos são verborrágicos
não se prendem às pontas dos dedos
às pontas das línguas
vão além da concretude
não precisam fazer sentido

se dissesse tudo o que penso
se escrevesse tudo o que sinto
se lembrasse de tudo o que sonho
nem mesmo Freud saberia me interpretar

prefiro as perguntas.


(imagem: Magritte)

7 de setembro de 2018

o retorno de Saturno


ao tropeçarmos em nossas esquinas,
encontramos algumas verdades.
sempre há algo além do fim das ruas,
mesmo dos becos sem saída.
a Terra não é plana
como acreditavam ser antigamente.
o que nos mantém de pé é o céu aberto.
a gravidade nos finca ao chão,
os sonhos não.
tudo isso é normal?
de perto, quem?
vivemos porque nos fazemos falta.
por perto, quem?
andamos pelas cidades
que por elas um dia andaram
quando não eram cidades
e ao tropeçarmos em nossas esquinas,
encontramos algumas verdades,
sempre há algo além do fim das ruas,
mesmo dos becos sem saída.
a Terra não é plana
como acreditavam ser antigamente.
o que nos mantém de pé é o céu aberto.
a gravidade nos finca ao chão,
os sonhos não.
tudo isso é normal?

fagulha


uma claridade nos acende
por dentro - dentro em nós
onde existe uma chama
que queima sem incendiar
fogo silencioso ardendo aceso
como se um vento atiçando
(rajada de força invisível)
qualquer resquício de faísca
fizesse surgir um secreto clarão
que nos iluminasse e alimentasse
e só nós pudéssemos enxergar.


(imagem: Sergio Buratto)