9 de setembro de 2018

das constatações

invejo mesmo é o meu cachorro:
sem nem sequer ter a suposição
de ser chamado de cachorro,
só deita e rola e sabe a que veio
sem se perguntar de onde e por quê.

gozação

palavrão é condomínio -
o resto há de ser conduta
que jamais ganhará multa.

horizontes



lá onde áfricas
escondem-se
vejo apenas
uma linha
a separar
a água de lá
da água de cá
mas se o traço
a noite escura
pinta, essa linha
- agora retinta -
quase não posso
enxergar,
águas de azuis
diferentes
misturam-se,
pretas-azuladas
fundem-se
em um mesmo mar.

8 de setembro de 2018

disco rígido


não digo tudo o que penso.
não escrevo tudo o que sinto.
não lembro de tudo o que sonho.
tanta coisa existe
dentro das madrugadas,
tantos pensamentos
dentro dos pensamentos.
ao acordar
um fiapo de noite espeta os olhos
(os sonhos desprendendo-se
das pálpebras).
quase nunca a minha mão
acompanha a velocidade
dos meus pensamentos,
pensamentos são verborrágicos,
não se prendem às pontas dos dedos,
às pontas das línguas,
vão além da concretude,
não precisam fazer sentido.
se dissesse tudo o que penso,
se escrevesse tudo o que sinto,
se lembrasse de tudo o que sonho,
nem mesmo Freud saberia me interpretar
prefiro as perguntas.


(imagem: Man in a Bowler Hat, de Magritte)

7 de setembro de 2018

o retorno de Saturno



ao tropeçarmos em nossas esquinas,
encontramos algumas verdades.
sempre há algo além do fim das ruas,
mesmo dos becos sem saída.
a Terra não é plana
como acreditavam ser antigamente
- como muitos ainda acreditam ser -,
o que nos mantém de pé é o céu aberto,
a gravidade nos finca no chão,
os sonhos, não.
tudo isto é normal?
de perto, quem?
vivemos porque nos fazemos falta.
por perto, quem?
andamos pelas cidades
que por elas um dia andaram
quando não eram cidades
e ao tropeçarmos em nossas esquinas,
encontramos algumas verdades,
sempre há algo além do fim das ruas,
mesmo dos becos sem saída.
a Terra não é plana
como acreditavam ser antigamente
- como muitos ainda acreditam ser -,
o que nos mantém de pé é o céu aberto,
a gravidade nos finca no chão,
os sonhos, não.
tudo isto é normal?
de perto, quem?

fagulha


uma claridade nos acende
por dentro - dentro em nós
onde existe uma chama
que queima sem incendiar
fogo silencioso ardendo aceso
como se um vento atiçando
(rajada de força invisível)
qualquer resquício de faísca
fizesse surgir um secreto clarão
que nos iluminasse e alimentasse
e só nós pudéssemos enxergar.


(imagem: Sergio Buratto)

amplitudes



1: entre outros,
nossos nomes
(outros nomes
apenas)
rastros na vastidão
(do que somos).

2: do de dentro,
espaço do corpo
que habitamos,
quaisquer palavras
escapadas
do céu da boca
são apenas meteoritos
sobre nossas línguas.

III- carrego um tanto
de júbilo, outro de lama,
reproduzo infinitos códigos
não impressos sobre a pele,
estoque de mim mesmo
em diferentes tons,
profusão de cores,
e nunca esqueço
de que diferente do sol,
outras estrelas só podem
ser vistas quando há escuridão.


(imagem: A Lua Cheia, de Paul Klee)

palimpsesto


não esperar entender
o que não se explica
do passado que margeia
sem sentido, algum ponto
debaixo de tudo o que há sob
todas as razões de já terem sido
e deixar que camada por camada
entre os anos, antigas palavras
desfaçam-se a olho nus
para que dentro de si
possam restar somente
aquelas que habitam vivas.

algumas luas depois



tentas ver na escuridão,
teto da noite em que te fechas,
espessa de ti mesma
(um bocado teu que treme),
como quando falas com as mãos
em gestos largos (trêmulos),
um jeito de quem nunca sabe
onde deixar que elas repousem.
agora, trancamo-nos no frio
de nossos movimentos quase inertes,
mas ainda existimos
em tudo o que é nosso
e sempre será: 
nas palavras perdidas sobre os diários,
nos dias intermináveis,
nas horas cinzas,
nas estórias que penso
ser capaz de escrever, pensamos.
mas o que sei eu da tua vida?
o que sabes tu da minha?
no entanto, escrevemos,
sem medo da queda,
pois que do chão não passamos.

vermelho


de repente
invento
um jeito
de te olhar
como quem
não quer nada
querendo tudo
- só para ver
se venta
numa noite
morna
como esta,
abafada,
sem razão...
quem disse
que era preciso?
se desde sempre
por aqui entre nós
não houve lógica,
que o que sentimos
não era divisão,
entre braços
intrusos,
mãos
que escorregam
à procura
de um canto
pelo corpo,
olhamos,
porque ainda
são vermelhos
os olhares
e o desejo:
boca que tu pintas
só para veres
manchar o cigarro.


(imagem: Charlotte Gainsbourg por Jean-Baptiste Mondino)

órbita


somos mais do que o que dizemos
ou ainda podemos ser menos -
dizer é também ficar restrito
como olhar para trás da órbita
e enxergar apenas um detrito
do universo inteiro
que por dentro temos.

decifra-te ou devoram-te


não nos levemos tão a sério, descobrimo-nos na imperfeição. tudo ainda existirá depois de nós, mas nenhuma gota de sangue será eterna. o chão de Nazca já existia antes dos seus desenhos, que somente a natureza, incorruptível, saberá conservar (porque a natureza nunca precisou de ensinamentos). os tigres não precisam de filosofia, as hienas, as zebras, os pássaros... e nós caçamos milhares de porquês para os nossos instintos. já fizeste uma comparação para perceber a incrível diferença entre um bando de leões sobre um deserto e uma multidão de pessoas sobre algum lugar cimentado? as vozes atropelam muito mais do que os veículos, muitas cabem em um mesmo metro quadrado. quantas dentro da tua consciência?

desregrar-se





só se encontra
quem se perde
(tantos são
os caminhos tortos)

andar na linha
qual um trem
é saber aonde ir

mas também
correr o risco
de só andar
preso ao chão

e para sempre
levar consigo
uma aflição
permanente
da possibilidade
de descarrilar-se.


(imagem: JMW Turner)

dos devires



nada é.
tudo está.
o corpo que habito,
as chagas, as árvores,
as fachadas das casas, das igrejas,
os lençóis sujos dos puteiros,
a saliva dos monges,
as línguas bifurcadas das cobras,
dos seres vivos à matéria inorgânica,
tudo denuncia a passagem do tempo:
existir é transmutar.


(imagem: Hundertwasser)

antimatéria


antes de tudo, escrevo.
do contrário, apenas rabiscaria
papéis em um escritório.
contaria cédulas e moedas em um banco.
ou trabalharia em uma repartição pública.
chegaria em casa às vinte horas,
faria a janta e assistiria à novela,
a um filme ou ao jogo de futebol.
depois, sem pensar em nada de mais,
sem chance para as lucubrações,
apenas esvaziaria da mente o longo dia,
números, contas, asfaltos, obrigações.
veria a cama,
que seria somente uma cama,
fecharia os olhos e dormiria.
no outro dia, calçaria os sapatos,
escovaria o cabelo, os dentes,
tomaria o café da manhã lendo o jornal,
que seria somente um jornal,
e voltaria ao local de trabalho,
talvez depois de brigar com o relógio,
talvez pontualmente.
viveria assim, burocraticamente.
e enchendo-me de cotidiano,
até o limite onde eu transbordaria,
haveria o risco de em mim
ainda caber um novo hábito:
entre o céu e a terra,
enxergar apenas o que é palpável.


(imagem: José Gurvich)

6 de setembro de 2018

inclassificável


não me defino.
ninguém pode nos definir.
nenhuma palavra
alcança-me por inteiro.
se quiserem me classificar,
que seja de inclassificável.
sou múltiplo, simples,
complicado, variável...
se tento cristalizar uma parte minha,
imediatamente uma outra me escapa.
portanto, não me resumo,
ainda que, às vezes,
goste de ir direto ao ponto.
no entanto, posso me encher de vírgulas,
afinal, quem não é cheio de entretantos?


(imagem: Violeta Parra)