hoje em dia, se formos aos lugares mais bonitos do mundo (ou em qualquer lugar), provavelmente veremos pessoas fazendo registros fotográficos... de si mesmas. não basta mais vivermos simplesmente, do modo que quisermos, seja lá como for, não basta mais existirmos, agora é preciso provar diariamente que existimos, as fotografias de nós mesmos dão para os outros a autenticação, ainda que ilusória, de que somos sempre produtivos, sempre felizes (a tal "positividade tóxica"), saudáveis - e ao mesmo tempo sem enxergar que desenvolver um vício em se exibir diariamente em uma rede social, tornando-se escravo(a) da aprovação alheia, pode ser algo tão nocivo para a própria mente quanto usar constantemente qualquer tipo de droga lícita ou ilícita.
em um mundo de pessoas com os olhares atualmente tão direcionados para si mesmas, difícil é ver quem consiga registrar, apenas com as retinas ou mesmo com uma câmera fotográfica, somente o que está ao redor, o que existe para além dos nossos umbigos. mas a carência e a necessidade de autoafirmação falam mais alto, por isso o número de selfies compartilhadas nas redes sociais costuma ser bem maior do que o número de outros tipos de fotografias.
algum tempo atrás, Kim Kardashian compartilhou em seu perfil no Instagram uma selfie em que ela estava nua (com tarjas nas "partes íntimas") na frente de um espelho (apenas mais uma de suas milhares de selfies, exatamente como fazem tantas e tantas outras pessoas que diariamente compartilham selfies pensando, provavelmente, que seus seguidores vão achar que há muita diferença entre elas). a atriz Bette Midler, que é conhecida pelo seu bom humor, comentou em seu perfil no Twitter:
"Se Kim Kardashian quer que vejamos uma parte dela que nunca vimos, ela vai ter que engolir a câmera."
quanto a mim, sempre gostei de fotografias, desde quando só era possível fazer registros fotográficos analógicos, desde quando as fotografias serviam apenas como registros para nós mesmos, inclusive tenho uma caixa com muitas fotografias guardadas em álbuns. mas aqui mesmo, neste blog (que eu não sei até quando pretendo manter, mas que mantenho ainda somente por ser um espaço mais específico para a publicação de poemas e outros textos, inclusive de outros autores, para pessoas que eu sei que terão verdadeiro interesse em ler e que não buscam apenas a superficialidade de meia dúzia de palavras como legenda para selfies ou outros tipos de fotografias), de vez em quando compartilho registros fotográficos feitos por mim, da natureza, de bichos, de cenas urbanas, grafites e qualquer coisa que contenha algum significado poético. gosto, também, de algumas selfies que vejo pelos mares da internet, algumas são imagens bonitas, interessantes.
não gosto é quando há apenas o raso discurso do "#goodvibesonly" ou "#shinyhappypeople", até porque quem mostra e espera ver nos outros apenas as luzes, o lado iluminado, geralmente se torna uma pessoa com pouca capacidade empática e, como consequência, ignora a realidade das próprias sombras e das sombras que há ao seu redor, os horrores que acontecem diariamente pelo mundo. ainda pior é quando essa falta de sensibilidade aliada ao vício de ter que estar sempre fotografando tudo, em qualquer momento, em qualquer lugar, faz com que certas pessoas percam a mínima sensatez e acabem agindo como urubus diante da carniça - embora seja uma enorme injustiça, para os urubus, compará-los com essas pessoas.
não é uma novidade o ser humano sentir prazer em observar a vida alheia (inclusive a desgraça alheia) e, principalmente, sentir-se como o centro do Universo, das atenções (desde um princípio antropocêntrico que tem levado à destruição inconsequente do meio ambiente, inclusive). mas agora, com as redes sociais, esse comportamento, de se expor tanto quanto de observar, tornou-se ainda mais simples e apenas mais evidente.
sobre todos nós, e para todos nós, principalmente para quando estamos, ou estivermos, com nossos egos muito inflados, pensando que somos, para os outros, muito mais importantes e imprescindíveis do que o que realmente somos, dois trechos de um poema de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa):
"(...) De que te serve
o quadro sucessivo
das imagens externas
A que chamamos
o mundo?
A cinematografia
das horas representadas
Por actores de convenções
e poses determinadas,
O circo policromo do nosso
dinamismo sem fim?
De que te serve
o teu mundo interior
que desconheces? (...)
(...) Fazes falta? Ó sombra fútil
chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes
falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti. (...)"
ou, de um modo mais direto, mas não menos poético, uma frase de uma música que ouvi dias atrás: "Ninguém neste mundo é porra nenhuma."
