22 de junho de 2021

"Falso Brilhante"


na casa em que vivi na minha infância havia uma sala de música, uma sala onde ouvíamos música, que era um dos lugares da casa em que eu mais gostava de estar. havia nessa sala uma espécie de sofá de alvenaria com algumas almofadas por cima, uma vitrola e muitos, muitos discos. eram vinis com músicas de todos os tipos, vinis de bandas de rock (brasileiras e de outros países, muitos vinis dos Beatles, banda que meu pai sempre gostou, Led Zeppelin, Pink Floyd, Queen, etc.), de música pop e principalmente vinis de música brasileira, inclusive a incrível coleção da Abril Cultural chamada Nova História da Música Popular Brasileira, com vinis de parte da obra de diversos artistas brasileiros, por exemplo (em desordem alfabética): Dorival Caymmi, João Bosco e Aldir Blanc, Lupicínio Rodrigues, Pixinguinha, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Assis Valente, Ary Barroso, Lamartine Babo, Paulinho da Viola, Cartola, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Baden Powell, Ataulfo Alves, Jorge Ben, João do Vale, Zé Kéti, Geraldo Vandré, Monsueto, Martinho da Vila, Adoniran Barbosa, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Moraes Moreira, Novos Baianos, Raul Seixas, Dolores Duran, Tito Madi, Rita Lee, Mutantes, Secos & Molhados, Jards Macalé, Luiz Melodia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil e muito mais.

dentre essa enorme coleção de discos que havia naquela sala da minha antiga casa, alguns chamavam mais a minha atenção, às vezes podia ser por causa da capa, pelas fotografias ou pelas palavras escritas nos encartes... e um desses, que por todas essas razões despertou a minha curiosidade de uma forma especial, era o álbum "Falso Brilhante", da Elis Regina, que foi lançado em 1976, cinco anos antes de eu nascer. naquela época em que eu comecei a prestar atenção aos álbuns que havia naquela sala, o primeiro impacto que tive com o "Falso Brilhante" foi através da capa, dos desenhos da capa, dos nomes das músicas e do nome da cantora, inclusive pela forma e pelas cores das letras, e depois, com o passar do tempo, o que começou a me impactar mais profundamente sobre esse álbum foi a voz daquela cantora. havia, na minha percepção, um tipo de força naquela voz, mesmo quando parecia cantar algumas músicas com mais suavidade, uma força que se destacava entre as outras vozes femininas que eu ouvia através daqueles vinis. não era apenas uma questão de técnica vocal, ou de timbre, era principalmente por causa dessa força que eu podia sentir através do som daquela voz, especialmente quando eu ouvia a música Como Nossos Pais, do Belchior, que foi outro desses artistas que mais chamaram a minha atenção através dos vinis daquela coleção, principalmente por causa do álbum Alucinação, também lançado em 1976.

Como Nossos Pais se tornou, então, uma música com muitos significados para mim, uma música que ouvi em diversos momentos da minha vida e que hoje em dia me faz ter muitas lembranças quando ouço ou simplesmente quando penso nela. lembro, e só de lembrar é como se eu pudesse sentir outra vez o calor daquele momento, de um domingo em que eu estava na praia de Itapeva com a minha família, meus pais e meus irmãos, eu com um pedaço de melancia nas mãos, e de repente começar a tocar Como Nossos Pais, na voz da Elis, no rádio do carro em um volume alto. muitos anos depois, quando eu já estava morando sozinho em Porto Alegre, voltei a ouvir esse álbum da Elis e muitos outros daquela coleção que eu levei comigo, época em que comecei a comprar álbuns da Elis e de outras cantoras e cantores da música brasileira. eu não pensava, durante a infância, que enquanto meu pai ouvia aqueles discos todos eu também estava de algum modo absorvendo aquelas músicas em algum lugar dentro de mim. "Falso Brilhante", por exemplo, com certeza não teria hoje para mim o mesmo significado se eu não tivesse ouvido o disco na minha infância, mas para além do que ele representa hoje para mim, tornou-se um dos discos mais apreciados da vasta discografia da Elis.

o disco "Falso Brilhante", que foi gravado em apenas dois dias durante as folgas das apresentações de um espetáculo homônimo que misturava influências circenses e uma forte carga política em plena ditadura militar (e que permaneceu 14 meses em cartaz em São Paulo), contém algumas pérolas da música: além de Como Nossos Pais, a primeira música do disco, há outra composição de Belchior, que eu gosto muito, a versão rock de Elis da música Velha Roupa Colorida, e também uma gravação de Gracias a la Vida, de Violeta Parra (que, para mim, é uma das músicas mais bonitas que existem), e de Los Hermanos, música do grande compositor e cantor argentino Atahualpa Yupanqui, e de Tatuagem, de Chico Buarque. por essas cinco músicas o disco já merece o imenso valor, para mim, que ele tem, mas há também a clássica Fascinação, versão de Armando Louzada de uma canção que foi composta no princípio do século XX, Quero, de Thomas Roth, e Um por Todos, Jardins de Infância e O Cavaleiro e os Moinhos, três músicas compostas por João Bosco e Aldir Blanc. "Falso Brilhante", esse disco emblemático de Elis, é uma obra-prima da música brasileira.

***

Los Hermanos

yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
en el valle, en la montaña, en la pampa y en el mar
cada cual con sus trabajos, con sus sueños cada cual
con la esperanza delante, con los recuerdos detrás
yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
gente de mano caliente, por eso de la amistad
con un lloro pa' llorarlo, con un rezo pa' rezar
con un horizonte abierto que siempre está más allá
y esa fuerza pa' buscarlo con tesón y voluntad
cuando parece más cerca es cuando se aleja más
yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
y así seguimos andando curtidos de soledad
nos perdemos por el mundo, nos volvemos a encontrar
y así nos reconocemos por el lejano mirar
por las coplas que mordemos, semillas de inmensidad
y así seguimos andando curtidos de soledad
y en nosotros nuestros mortos pa' que nadie quede atrás
yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
y una hermana muy hermosa que se llama Libertad.


Atahualpa Yupanqui



14 de junho de 2021

o pequeno pássaro


no dia 3 de março deste ano, por volta das 5 horas da tarde, eu havia acabado de deitar no chão do meu quarto com o meu cachorro quando ouvi o som de um pássaro que parecia estar bem próximo da porta da sacada. pensei, em um primeiro momento, que fosse apenas mais um dos muitos pássaros que constantemente pousam sobre a sacada do meu quarto e que logo voam quando eu me aproximo. abri apenas um pouco a porta, com calma, e vi através da fresta: um pequeno pássaro parado no chão da sacada. ele não se movimentava, mas seguia emitindo o mesmo som, como se estivesse querendo dizer algo. abri um pouco mais a porta e fiquei atrás dela durante uns dois ou três minutos apenas observando aquele pequeno pássaro que parecia já ter notado a minha presença e sem se assustar com isso. comecei a ter a forte impressão de que aquele pequeno pássaro estava ali mais me observando do que sendo observado por mim.

depois de mais alguns minutos, abri a porta totalmente e me aproximei daquele pequeno pássaro, que seguiu parecendo não ter medo da minha aproximação e ainda emitindo seu som como se quisesse dizer algo. pensei, então, que ele poderia estar de algum modo machucado, com algum problema nas asas, ou em alguma outra parte do seu pequeno corpo, e o que até então era apenas um momento meu de admiração por aquele pássaro começou a se transformar em um sentimento de aflição, de preocupação, afinal eu não sabia o porquê de aquele pequeno pássaro, apesar de aparentemente bem, estar imóvel daquela maneira e emitindo aquele som há alguns longos minutos. pensei, também, que ele pudesse estar apenas querendo descansar por um tempo sobre o chão da sacada do meu quarto e que em algum momento ele iria voar, ir embora.

peguei um pouco de água com um copo e joguei com calma a água no chão para que ela escorresse até perto de onde ele estava, imaginei que a água, se ele realmente bebesse um pouco ou mesmo que se apenas molhasse o bico, poderia fazer algum bem para ele. quando a água começou a se aproximar dele eu vi que ele ficou curioso olhando de lado o caminho que a água fazia enquanto escorria pelo chão e em seguida ele começou a dar umas bicadas no chão para beber a água. pensei que ele pudesse estar com fome também e decidi procurar algo para ele comer, ainda que naquele momento eu não fizesse ideia do que poderia servir de alimento. vi sobre a mesa da cozinha o pão integral e decidi pegar um pequeno pedaço de uma das fatias e fazer farelo, que coloquei ao lado do pequeno pássaro e que ele começou a comer no mesmo instante. por um momento, senti um pouco de alívio ao pensar que eu estava de algum modo matando a sede e a fome daquele bichinho.

fiquei mais alguns minutos observando o pássaro e depois voltei para dentro de casa. deixei a porta apenas um pouco aberta, com uma pequena fresta, para que meu cachorro não saísse, e fui fazer outras coisas. de vez em quando eu voltava para o quarto e observava por entre a fresta da porta para ver se o pequeno pássaro ainda estava lá, e em todas as vezes ele estava no mesmo exato lugar. a noite chegou e depois de algum tempo o pequeno pássaro foi para o outro lado da sacada, ainda em pé sobre o chão, e ficou como se estivesse com o bico encostado na parede. pensei que ele poderia estar dormindo, talvez ainda descansando, qualquer coisa assim, e segui de vez em quando observando aquele pequeno pássaro pela fresta da porta, pensando ainda que talvez em algum momento ele iria voar, ir embora. 

tenho o costume de deixar a porta da sacada aberta para que meu cachorro saia sempre que ele sentir necessidade, mas como o pássaro não saía de lá e ao mesmo tempo percebi que meu cachorro já poderia estar querendo sair, decidi pegar uma caixa de sapatos, botar um pano fino sobre o fundo da caixa, pegar o pequeno pássaro e colocá-lo com calma dentro da caixa sem tampa que deixei sobre uma cadeira que há na sacada. pelas horas seguintes, até o momento em que fui dormir, observar aquele pequeno pássaro se tornou, então, quase uma obsessão para mim, quase como se eu tivesse que cuidar de um bebê recém-nascido dormindo em um berço. antes de ir dormir, já bem tarde, observei mais uma vez o pequeno pássaro e ele ainda estava na mesma posição dentro da caixa, como se ainda estivesse dormindo. toquei levemente em suas asas, como se fizesse um carinho com a ponta do dedo, e fui deitar para tentar dormir, apesar da minha ansiedade por não saber exatamente o que estava acontecendo com aquele pássaro e se ele ficaria bem até o momento em que eu acordasse, se ele ainda estaria ali... 

pela manhã, a primeira coisa que fiz depois de acordar foi levantar e ir olhar dentro da caixa. o pequeno pássaro estava deitado, morto. senti naquele momento uma tristeza como se eu tivesse perdido um bicho de estimação que há muito tempo fazia parte da minha vida, e pelos minutos seguintes vários pensamentos começaram a ecoar na minha mente: será que esse pássaro talvez tivesse alguma noção de que iria morrer e apenas por coincidência acabou pousando exatamente na sacada do quarto de uma pessoa que ama pássaros? com tantas sacadas para ele pousar na cidade, na avenida em que moro, e até mesmo no prédio, será que foi apenas uma espécie de acaso da vida ele ter pousado exatamente na minha sacada e quase no mesmo momento em que eu havia deitado no chão ao lado da sacada? será que esse pequeno pássaro estava apenas procurando algum lugar tranquilo em que pudesse passar suas últimas horas de vida ou quis, também, de algum modo, com o que lhe restava de vida até mesmo me dizer algo sobre a minha própria vida? por que não? algumas horas depois, quando a noite já havia chegado, fui com o meu cachorro procurar algum lugar em que eu pudesse enterrar aquele pequeno pássaro.

para além das muitas perguntas que me fiz naquele momento em que encontrei o pequeno pássaro morto, e que às vezes ainda me faço desde aquele dia, sei, porque sinto, que as horas em que aquele pequeno pássaro esteve ao meu lado me transformaram de algumas maneiras através da minha admiração por ele, dos meus olhos que se encheram daquela beleza pura, afinal, como Manoel de Barros escreveu em um poema, "é no ínfimo que eu vejo a exuberância".



6 de junho de 2021

das perguntas




o que é acordar para a vida? quem, na verdade,
está acordado ou acordada para a vida?
quem despertou? acordar para a vida
é abrir os olhos todos os dias, nas manhãs,
com o som de um despertador
para ir bater o ponto do trabalho
e depois, algumas horas depois,
bater o ponto outra vez, sempre igual,
como um autômato, um robô, todo mês?
acordar para a vida é simplesmente acordar
para "ganhar a vida"? e as tantas pessoas
que estão apenas "ganhando a vida"
têm alguma noção do quanto de vida
ao mesmo tempo podem estar perdendo também?
ter estado acordado ou acordada para a vida
é ter acumulado um tanto de posses e dinheiro
para chegar próximo ao fim e só (talvez), então,
lembrar que, para tudo e para todos, o que restará
é o que levará de um tempo de decomposição?
quem, na verdade, enquanto teve uma vida
esteve acordado ou acordada para essa vida?
foi quem manteve por anos algumas relações
somente por não conseguir, ou não saber, ser só?
quem é que sabe acordar para também ser só?
quem é que sabe acordar para também só ser?
quem é que acorda para ser mais do que ter?
estão acordadas para a vida
as tantas pessoas que esquecem
que a natureza não precisa de nós
e que nós é que precisamos dela?
estão acordadas para a vida
as tantas pessoas que só sabem nutrir
a flor de seus próprios umbigos?
estão acordadas para a vida
as tantas pessoas que, sob um teto 
de milhares de nuvens e estrelas,
observam apenas a vida alheia
ou que, para além do valor
que para si mesmas se dão,
medem o valor das outras pessoas
pelo que elas têm e não pelo que elas são?
estavam acordadas para a vida (que vida?)
as tantas pessoas que votaram
em um homem boçal, egoísta e pernicioso
para presidente do país?
estão acordadas para a vida (que vida?)
as tantas pessoas que se calam
diante dos tantos horrores do mundo
e que, na intenção de agradar pais,
supostos amigos, gregos e troianos,
são, através de seus silêncios,
coniventes com as injustiças?
o que é acordar para a vida?
afinal, enquanto houver vida, quem, na verdade,
estará acordado ou acordada para essa vida?





imagem: Árbol de la vida (1963), 
tela bordada por Violeta Parra