24 de janeiro de 2021

o poço

(da sacada do quarto)


A moeda do Acaso
cai tão fundo
no Poço dos Destinos
que vivemos descolados
do viver do outro,
como num contrato de comportamento.
O milagre do viver nos entorpece.
Então a notícia da doença de um amigo,
o convite para a missa de um outro,
um susto, um alarme, uma suspeita
nos vareja no rosto uma aragem de morte.
Às vezes choramos,
ficamos desorientados
mas abrimos os olhos,
levantamos os ombros e seguimos em frente.
A gente é assim.
Como não guardo a esperança
de um encontro feliz
ao final das eras, 
valorizo o tempo do aconchego,
abraço, beijo, conforto, aceito, sirvo. 
Armo como posso a teia do afeto,
enquanto estamos perto
enquanto estamos vivos. 



Abel Silva
"O poço". in: Fôlego. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018.

21 de janeiro de 2021

Solilóquio de Nina Simone

Habitou-me um deus espesso.
Sangue cor de fígado.
Veneno talhado, macerado e amargoso. 
Fez morada em cada célula. 
Nos alvéolos, nas entranhas, sob as unhas.
Expande a veia do pescoço.
Sangra pelas gengivas.
Lateja nas têmporas e nos pulsos. 
Planta arrancada da terra africana,
deita suas raízes fundas de baobá
e traz gosto de lama à boca. 
Tem sabor atávico a relembrar
o lodo de que se originou o homem.

Habitou-me um deus exigente,
que me fere e exaspera.
Que espezinha o que eu era.
Que fala o que eu não pensara
e, dizendo-me ao contrário, 
faz-me gostar do calvário 
que, às cegas, eu criei. 
Nomeio que não tem nome:
Raio de Iansã, trovão, ciclone,
Sopro de Orixá, c'est moi
Nina Simone. 


Donizete Galvão (1955 - 2014)


***



16 de janeiro de 2021

Colapso em Manaus não é acidente, mas fruto do projeto bolsonarista

Parentes assistem a funeral de vítimas da covid-19 
no Cemitério Nossa Senhora Aparecida
em Manaus, Amazonas
imagem: Michael Dantas - AFP



por Leonardo Sakamoto (do UOL)



Manaus está sem oxigênio em hospitais. Pacientes estão sufocando. 

O aumento súbito na demanda por leitos de UTIs para covid-19 e por oxigênio ocorre duas semanas após as festas de final de ano. Nesse período, o presidente da República, mais uma vez, plantou irresponsabilidade ao incentivar as pessoas a ignorarem o isolamento social e a aglomerarem-se. Segundo ele, medo da covid é coisa de "maricas" e "todo mundo morre um dia". O impacto negativo de seu governo consegue superar o de qualquer mutação do coronavírus. 

Wilson Lima (PSC), governador do Amazonas, anunciou, nesta quinta (14), toque de recolher noturno para reduzir o número de casos, que também já levou a novo colapso nos cemitérios. Em dezembro, ele voltou atrás em um decreto com restrições a atividades não-essenciais, que poderia ter salvado vidas, após pressão de empresários e deputados bolsonaristas. 

A coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, apontou que administradores dos hospitais da capital amazonense e pesquisadores confirmam o atual cenário de terror. Parentes compram cilindros individuais para tentar salvar familiares e pessoas com outras doenças que dependem do insumo também estão sendo afetadas. O que será de recém-nascidos que precisam de respiradores, por exemplo?

O governo federal está transferindo pacientes para outros Estados, em caráter emergencial. Há gente passando vergonha e batendo palma para o que eles chamam de "logística de guerra" nas redes sociais, quando isso, na verdade, é uma derrota que poderia ter sido evitada se tivéssemos governo. Temos um vácuo sentado no Palácio do Planalto. 

Afirma-se que o suprimento de oxigênio acabou devido a um salto inesperado no número de casos. Não, não foi surpresa. Infectologistas, epidemiologistas e cientistas apontavam que a redução no isolamento, incentivada por autoridades como o presidente, cobraria um preço altíssimo no meio de janeiro. Inesperado é um meteoro destruir uma cidade de 207 mil habitantes. O que estamos vendo no Brasil é projeto. 

Após deixar milhões de testes para covid-19 vencerem em um depósito do governo em Guarulhos (SP) e apresentar um plano picareta para a distribuição da vacina, o ministro da Saúde e especialista em logística (sic), general Eduardo Pazuello, vê pacientes morrerem sufocados em Manaus por falta de oxigênio. 

Pazuello não surgiu de geração espontânea a partir de uma farda vazia num armário. Foi Jair Bolsonaro que o colocou lá. 

Medalhista na modalidade Arremesso de Responsabilidade à Distância, o presidente correu para jogar a culpa apenas nas costas do governo estadual e da prefeitura local. Na terça (12), afirmou que ambos deixaram acabar o oxigênio e que Pazuello tinha ido à capital para resolver a situação. Medalha de ouro. 

Apesar de ter entrado para o anedotário mundial, Maria Antonieta, rainha da França no século 18, nunca disse "se o povo não tem pão, que coma brioches". Também não há registro de que Pazuello tenha dito: "Se o manauara quer oxigênio, que engula cloroquina". Mas foi o que, de fato, fez. 

Em um dos lances mais bizarros desde que começou a pandemia (e olha que a competição é acirrada), o Ministério da Saúde pressionou a Prefeitura de Manaus a distribuir hidroxicloroquina e ivermectina, remédios usados contra malária, lúpus e infestação por vermes, como tratamento precoce para a covid, como informou o Painel, da Folha de S.Paulo. Poderia ter garantido o estoque de oxigênio ou viabilizado uma vacina, mas optou por forçar para que aceitassem "feijões mágicos".

Se o governo federal, desde o início da pandemia, tivesse assumido a articulação no combate à doença, saberia quando Estados e municípios precisariam de insumos. Assim, problemas seriam evitados e pessoas não morreriam. Transportar pacientes agora é corrigir um erro, não mostrar competência. Preferiu abraçar o vírus como um velho amigo. 

O presidente não cansa de repetir que o Supremo Tribunal Federal o deixou da mãos atadas por entregar o combate à pandemia a governadores e prefeitos. Mentira. O STF afirmou que eles também têm poder para definir medidas, como quarentenas, não que o governo federal não tinha que se envolver. Vale lembrar que, se dependesse de Bolsonaro, não haveria quarentenas. E, com isso, teríamos mais mortos. 

É um atestado de incompetência carimbado na testa o fato de que o alerta da falta de oxigênio seja tanto a asfixia de doentes quanto a tortura física e psicológica de profissionais de saúde, obrigados a ventilar manualmente pacientes para afastá-los da morte. 

O salto de internações e óbitos em Manaus não é uma situação isolada, portanto, mas o prenúncio de que vem por aí uma evitável colheita de óbitos. 

Há nuvens escuras no horizonte. Parece uma tempestade.

14 de janeiro de 2021

Saramago



A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá 'que coisa tão cruel'. 

Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?

Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 

Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 


José Saramago, in Diálogos com José Saramago (1998)


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Produzimos uma Cultura de Devastação

Todos os anos exterminamos comunidades indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras palavras das nossas línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. 

Konrad Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser humano. Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um projecto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece, a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade de esperança. Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder económico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstractas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efémeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade...

José Saramago, in Revista Universidad de Antioquia (2001)


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Não Calar

Há uma regra fundamental quando se vive como nós estamos a viver - em sociedade, porque somos uns animais gregários - que é simplesmente não calar. Não calar! Que isso possa custar em comunidades várias a perda de emprego ou más interpretações já o sabemos, mas também não estamos aqui para agradar a toda a gente. Primeiro, porque é impossível, e segundo, porque se a consciência nos diz que o caminho é este então sigamo-lo e quanto às consequências logo veremos.

José Saramago, in Uma Longa Viagem com José Saramago (2009)


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imagem: José Saramago portrait, de Elia Bonetti

9 de janeiro de 2021

os cavalos e a neve

há muito tempo que gosto muito de fotografias, especialmente de fotografias da natureza, dos bichos, e mais especialmente ainda da natureza com seus bichos. em tempos de profusão e banalização de selfies, em que as pessoas têm seus olhares cada vez mais direcionados para si mesmas, parece estar se tornando mais inusitado ver gente com verdadeiro interesse em fotografar também o que está ao seu redor, para além do próprio umbigo (eu já ouvi, por exemplo, algum tempo atrás, uma pessoa dizer que não via "graça" em "fotografia em que não aparece gente"). minha irmã, que mora no Colorado, nos EUA, em um lugar com montanhas lindas que ficam cobertas de neve nesta época do ano, costuma me enviar fotografias de lá: do céu quando ele parece estar pedindo para ser fotografado, de tão lindas as cores e as nuvens que se formam no momento (e porque ela sabe que eu gosto de fotografias do céu), dos cachorros que vivem com ela, dos diversos bichos que ela observa pelos lugares por onde passa, etc. alguns dias atrás, no caminho para o lugar onde trabalha, ela passou, como de costume, por alguns cavalos que ficam em um enorme terreno com arame ao redor. ela já havia me mandado algumas imagens, inclusive em vídeos, desses cavalos, que são muitos e aparentemente bem tratados (ela às vezes para e os observa enquanto é observada por alguns deles), mas dessa vez as imagens ficaram tão bonitas, tão singularmente bonitas, que senti vontade de postá-las aqui no blog:






1 de janeiro de 2021