14 de janeiro de 2021

Saramago



A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá 'que coisa tão cruel'. 

Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?

Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 

Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 


José Saramago, in Diálogos com José Saramago (1998)


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Produzimos uma Cultura de Devastação

Todos os anos exterminamos comunidades indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras palavras das nossas línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. 

Konrad Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser humano. Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um projecto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece, a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade de esperança. Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder económico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstractas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efémeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade...

José Saramago, in Revista Universidad de Antioquia (2001)


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Não Calar

Há uma regra fundamental quando se vive como nós estamos a viver - em sociedade, porque somos uns animais gregários - que é simplesmente não calar. Não calar! Que isso possa custar em comunidades várias a perda de emprego ou más interpretações já o sabemos, mas também não estamos aqui para agradar a toda a gente. Primeiro, porque é impossível, e segundo, porque se a consciência nos diz que o caminho é este então sigamo-lo e quanto às consequências logo veremos.

José Saramago, in Uma Longa Viagem com José Saramago (2009)


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imagem: José Saramago portrait, de Elia Bonetti

10 comentários:

  1. Me encanta Saramago. Espero estés bien. Saludos desde mi Monterrey

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  2. Uma vergonha, mas nunca li nenhum livro de Saramago, mas ele era genial! :) Bom fim de semana.
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  3. Para além de grande escritor, Saramago era um notável pensador.
    Li quase tudo dele, mas acho que vou começar a reler.
    Bom fim de semana, caro Ulisses.
    Abraço.

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  4. Há grandes verdades nessas palavras ditas por Saramago. Eu poderia destacar várias frases, mas acho que isso serve como um ótimo resumo: "Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder económico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstractas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efémeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade..." Aplausos para Saramago! E a pintura do rosto dele também merece aplausos, é muito interessante! Abraços.

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  5. Muito boa partilha. Gostei muito de ler e concordo.
    Se as pessoas pensassem menos em si e fossem empáticas com os outros, o mundo seria realmente outro.
    Beijos.

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  6. Y Saramago ya se murio. Ni se hubiera imaginado lo que ocurriria en este 2020. Sera consecuencia de todo lo escrito. Tranquilamente si. El mundo que se devora al mundo. Saludos

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  7. Era um grande pensador sem dúvida nenhuma.
    Gostei de ler.
    Obrigada pelas visitas e pelos comentários aos meus poemas.
    beijinhos
    :)

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  8. São Sebastião, livrai_me desta peste que se abateu sobre a humanidade. Livrai_me e livrai minha filha, minha família e toda a terra. Amém!

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  10. Um pensador brilhante! Como eu desejava que estivesse vivo, para fazer uma leitura bem apurada, deste nosso angustiante presente... se bem que as suas palavras, já muito bem delinearam a devastadora acção do homem... no mundo, e para si mesmo, de muitas formas...
    Formidável partilha, Ulisses!
    Beijinhos
    Ana

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