Receita para não ser alvo de intolerância (e talvez ser popular) no Brasil em tempos de Bolsonaro

Antes de tudo, se você nasceu homem, branco e é heterossexual, um ponto a mais para você, você já tem uma vantagem em relação aos demais. Mas independente do seu sexo, da sua identidade de gênero, da cor da sua pele, da sua orientação sexual, diga que você é uma pessoa cristã, não importa ser de verdade (ser é outra história), apenas diga que é. Fale muito em nome de Deus. Não siga nenhuma religião de matriz africana, isso é "coisa de pobre" e "macumbeiro". Ayahuasca nem pensar, isso é coisa de "gente doida". Se você for ateu, não diga, omita, não importa, para ser benquisto é preciso ter "Deus no coração". Diga sempre que você é do bem, e, claro, apenas do bem (seja maniqueísta, não importa que, na verdade, sejamos todos feitos de luzes e sombras, diga que você faz parte apenas do "reino das luzes"). Sobre economia, dizer que é liberal é o mais indicado, diga que é liberal também sobre determinadas questões sociais, sobre as liberdades civis, diga que não faz "acepção de pessoas", que não tem preconceitos, mesmo que, na verdade, você seja para lá de conservador, intolerante ou até mesmo cheio de vontade de estar sempre dizendo as maiores barbaridades sobre pessoas que pareçam muito diferentes de você, mas algumas barbaridades você pode dizer, afinal, o que em teoria era para ser considerado errado de se dizer e motivo para ser rejeitado, hoje em dia é apenas opinião e isso pode inclusive acabar sendo uma ótima isca para atrair outros milhares que comunguem dos mesmos pensamentos que os seus, dessa forma certamente irão lhe apoiar e até mesmo lhe enaltecer, você estará "mitando". Seja sempre condescendente apenas com pessoas que tenham mais dinheiro do que você, e para as realmente ricas diga amém e as bajule muito também. Se você for nordestino e lhe oferecerem capim, sorria amarelo (e verde), desconsidere (ser alvo de preconceito simplesmente por causa do lugar em que você nasceu ou mora e não gostar disso é coitadismo). Se você for mulher, convém não dizer que é feminista, ativista (isso pode até lhe custar a cabeça), desconsidere quaisquer frases machistas que você ouvir (não aceitar que lhe digam é coitadismo) e esteja do lado de homens (e mulheres) que desdenham das mulheres, esteja do lado de homens que, através de todas as coisas que dizem, deixam claro que pensam, como na piadinha-escrota-machista, que "mulher é aquela coisa que tem em volta da buceta", esteja do lado de quem diz que você nasceu de uma fraquejada, de quem lhe chama até mesmo de "vagabunda", não importa, o importante é estar do lado da maioria mesmo que ao se colocar do lado dessa maioria você esteja se colocando contra você mesma. Se você for LGBT, convém não lutar por causas LGBTs, ser ativista (isso pode até lhe custar a cabeça, embora no caso dos LGBTs o simples fato de "dar pinta" por aí pode acabar lhes custando a cabeça), desconsidere quaisquer frases LGBTfóbicas que disserem, se fizerem piada com a sua cara (não aceitar a LGBTfobia é coitadismo), engula quando dizem por aí que não existe homofobia no Brasil ou quando dizem que enquanto alguns LGBTs estão sendo vítimas de violência pelo país, há muito mais heterossexuais sendo vítimas (desconsiderando um "pequeno detalhe" de que heterossexuais não são vítimas de violência apenas pelo fato de serem heterossexuais, ao contrário dos LGBTs que são até mesmo assassinados apenas pelo fato de serem LGBTs), esteja do lado dos que dizem que uma pessoa vira gay por influência, que é uma "opção sexual", uma escolha, como se, podendo escolher, fossem uns idiotas escolhendo o caminho mais difícil, esteja do lado de quem diz que o seu sangue é pior do que o sangue dos heterossexuais, de quem fala como se você fosse um pedófilo em potencial, esteja do lado de quem na verdade pensa que você é escória da sociedade, de quem no fundo acha que você e um rato saído do esgoto têm o mesmo significado, não importa, o importante é estar do lado da maioria mesmo que ao se colocar do lado dessa maioria você esteja se colocando contra você mesmo. Se você for negro, não seja a favor de cotas raciais, não seja ativista (isso pode até lhe custar a cabeça), não fale em escravidão, escravismo, escravatura, afinal, isso é coisa do passado, desconsidere a "servidão por dívida", se os negros ainda são, de muitas formas, vítimas de preconceito, desconsidere até mesmo se fizerem piadas com a sua cara, com o seu cabelo, se por acaso lhe chamarem de macaco ou qualquer coisa do tipo (não aceitar o racismo, velado ou escancarado, é coitadismo), esteja do lado de quem fala do peso dos quilombolas como se eles fossem gado e não gente, de quem diz que eles não servem nem para procriar, esteja do lado de quem lhe julga pela cor da sua pele, não importa, o importante é estar do lado da maioria mesmo que ao se colocar do lado dessa maioria você esteja se colocando contra você mesmo. Menospreze os indígenas, aja como se eles nem existissem, desconsidere quando dizem que eles não merecem nem um centímetro a mais de terra. Seja contra o aborto e a favor da vida, mas seja simpatizante daquela manjada frase que diz que "bandido bom é bandido morto" e discorra sobre a pena de morte salivando de prazer ao imaginar a bandidagem toda morta, mas desconsidere quando o bandido for aquele que for rico e dorme de terno e gravata em uma cadeira da Câmara dos Deputados e diz que "come gente" com o dinheiro que recebe do auxílio-moradia (mesmo tendo casa própria), mama em tetas de prostitutas com o dinheiro que recebe "mamando nas tetas do governo" durante décadas e sem nunca ter, de forma alguma, nem sequer contribuído para resolver o problema da violência urbana da própria cidade em que mora. Não é necessário se importar com a natureza, com a Amazônia, se vão devastá-la ou não, não é necessário se importar com os animais, se a vida deles deve ser respeitada ou se serão caçados servindo como um "esporte saudável" para psicopatas poderem se divertir, falar sobre a queda do dólar é sempre muito mais importante. Diga que o seu partido é o Brasil, que Deus está acima de todos (não esqueça de que você diz que é cristão, não importando se, no fundo, Deus para você seja o dinheiro), bandeiras e camisas do Brasil estão na moda, siga a tendência, e com essas você não corre o risco de ser apedrejado na rua. Destile ódio por um partido específico apenas e incitando o ódio contra um partido específico apenas, mas desconsiderando o que diz um político que destila e incita o ódio não apenas contra um partido, mas também contra pessoas, determinadas pessoas, pessoas como as que você tem até mesmo na sua própria família. Fale incessantemente a palavra corrupção, corrupção, corrupção, roubalheira, corrupção, e desconsidere se o político em quem você votou é corrupto, se faz parte de partido que já recebeu propina e o dinheiro depois foi depositado em sua própria conta, se é ignorante, boçal, raivoso, intolerante, se ele se diz cristão e ao mesmo tempo idolatra e exalta torturadores (não importa, lembre-se que o importante é se dizer cristão). E se o seu desejo por atenção e necessidade de aceitação a qualquer custo for maior do que tudo, promova-se nas redes sociais agindo conforme todas as dicas aqui citadas, propague esses tipos de pensamentos para o máximo de pessoas que você puder alcançar. Se possível (melhor ainda), crie um canal no YouTube e alguma espécie de "movimento político" no estilo MBL de ser (não, não significa Minha Boca de Latrina), e assim talvez seja bem grande a chance de você um dia, se quiser, ser eleito deputado e até mesmo presidente do país.


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