Como um rio
Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.
E de levar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva
e lava.
Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.
Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.
Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade das funduras.
Como um rio, que nasce
de outros, sabe seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.
Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.
***
O açude
Não sei nem jamais
saberei o nome
(se acaso tem nome)
do bicho que dorme
no escuro do açude
sem fundo que sou.
Nascido, senão
comigo, de mim,
é um bicho, ou como
se fosse; e que dorme.
Nem sempre ele dorme.
Talvez o agasalhem,
de sono enrolado,
as mais fundas águas
que em minha alma dormem:
- as águas e o bicho
num sono só, feito
de grávidos nadas
espessos e imóveis.
Mas nem sempre imóveis.
Um dia estremecem:
sem causa, e de súbito,
um tremor percorre,
longínquo, levíssimo,
o nervo das águas
- essas águas fundas
que enrolam, dormidas,
o sono do bicho,
que já não é sono:
mal findo o arrepio,
começa a lavrar
o incêndio no açude.
***
O silêncio da floresta
Tem consistência física,
espessamente doce,
o silêncio noturno
da floresta.
Não é como
o do vento e vastidão,
cujos dentes de neve
morderam a minha
solidão.
Nem como o silêncio
aterrador
(no seu âmago
o tempo brilha imóvel)
do deserto chileno
de Atacama, onde,
um entardecer,
estirado entre
areia e pedras,
escutei cheio
de assombro
o latir do meu
próprio coração.
O silêncio da floresta
é sonoro: os cânticos
dos pássaros da noite
fazem parte dele,
nascem dele,
são a sua voz
aconchegante.
Sozinho no centro
da noite amazônica,
escuto o poder mágico
do silêncio,
agora quando os pássaros
conversam com as estrelas,
e recito silenciosamente
o nome lindo
da mulher que eu amo.
***
Faz escuro mas eu canto
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo,
companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir
para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada, vem o sol,
quero alegria,
que é para esquecer
o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.
***
Quando a verdade for flama
As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da escravidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.
***
Não aprendo a lição
A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.
Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça,
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.
A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.
***
Para os que virão
Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.
Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente,
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda
pessoa do plural.
Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros)
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.
***
Aprendizagem no vento
O vendaval findou.
Agora é só o vento
soprando a sua ferocidade
mais fria do que a pele
enrijecida e azulada
dos operários fuzilados.
O vendaval findou.
Agora é só o vento cotidiano,
implacavelmente morno,
hálito podre.
É com ele que se tem de aprender
a lição do revés, vida vivida.
Dos tantos que saíram,
poucos, muito poucos,
se reencontrarão um dia, tomara,
naquilo que foram
ou que não puderam ser.
Por enquanto, a cordilheira transposta,
o que se alteia
é o desvario da boca,
é cada vez mais o muro
entre a boca e a mão.
Aos que sonhavam mesmo,
vendo o claro,
e que puderam permanecer
no coração ardente da sombra,
cabe o labor maior
da aprendizagem.
É aprender com tudo
o que foi feito
e também com tudo
que deixou de ser feito,
como rasgar o caminho
da esperança que lateja,
que lateja, na frágua
da paciência operária.
O vendaval findou.
Telhados ocos
não poderão
servir de abrigo
a pássaros.
o poeta e tradutor Thiago de Mello nasceu na cidade de Barreirinha, no Amazonas, em 1926. desde cedo sua obra foi marcada pela identificação com a cultura de seu estado e pelo engajamento político e social. perseguido durante a ditadura no Brasil, exilou-se no Chile, onde permaneceu por dez anos (inclusive tornando-se amigo de Violeta Parra e Pablo Neruda, que traduziu para o espanhol os poemas de Thiago de Mello). durante o exílio, morou também na Argentina, na Alemanha, na França e em Portugal. com o fim do regime militar, voltou à sua cidade natal, onde vive até hoje.
Muito obrigada por esta partilha que transborda arte. Nunca tinha lido!
ResponderExcluirSólo lo conozco de nombre. Soy un ignorante completo de su obra y vida.
ResponderExcluirVoy a buscar a ver si hay algo de él en español, aunque como se sabe en las traducciones siempre algo se pierde.
Y también me interesa ver qué hizo cuando estuvo por estas tierras.
Abrazo Ulisses!
Quanto de belo compartilhaste.Lindos poemas,adorei! abraços, chica
ResponderExcluirCuanta sensibilidad, casi imposible de encontrar en la poseía de hoy...
ResponderExcluirGracias por compartirlo.
Saludos,
J.
Que bonitos poemas y no conocía a este poeta, no lo tengo en mi blog CafePoetas, gracias por dármelo a conocer. Saludos amigo.
ResponderExcluirUma excelente escolha. Principalmente para mim que não me lembro de ter algum dia lido algo deste poeta.
ResponderExcluirAbraço e uma boa semana
Obrigada pela partilha
ResponderExcluirGostei particularmente d"O Açude"
¡¡Gracias por compartir tanta belleza!!
ResponderExcluirAbrazote utópico, Irma.-
La brillantez de la literatura de habla portuguesa, está garantizada con los buenos poemas que compone.
ResponderExcluirBesos
Gosto do Thiago de Mello. Tenho livros dele na minha estante de poesia. Gostei de o encontrar aqui. Obrigada por partilhar..
ResponderExcluirUma boa semana.
Um beijo.
Que hermosos poemas. Gracias por compartir, yo no los conocía.
ResponderExcluirGracias por tus buenos deseos en mi blog.
Saludos y felicidades!
POESIA fabulosa a de Thiago de Mello.
ResponderExcluirGostei especialmente de O SILÊNCIO DA FLORESTA.
Em silêncio te abraço agradecida por esta partilha 💙
Grande Thiago de Mello, um exemplo de vida que é tão admirável quanto a obra!
ResponderExcluirOs sábios são perseguidos pelos ditadores. Obrigados a saírem do seu, próprio, pais. Para outro ou outros países que lhes dão apoio. A sabedoria das pessoas sabias é superior à inteligência dos ditadores que governam países pela força das armas nas mãos dos militares.
ResponderExcluirGostei de ler esses belos poemas.
Tenha uma boa noite caro amigo Ulisses. Um abraço.
Lindíssimos poemas a fazer paralelo com a vida.
ResponderExcluirBeijinhos.
Mucho sentimiento y poesía en estos versos.
ResponderExcluirGracias por compartirlos.
Un abrazo
Não conhecia.
ResponderExcluirObrigada por partilhar.
Abraço
A denúncia nas palavras do poeta, poesia de intervenção! Sempre a palavra, a própria "arma" !
ResponderExcluirProfunda, bela, afago doce, corte, firmeza...
Beijo
Um excelente conjunto de poemas.
ResponderExcluirQue me lembre, nunca tinha lido nada deste poeta. Por isso, obrigado pela partilha. Saio daqui mais rico...
Caro Ulisses, um bom fim de semana.
Abraço.
"Faz escuro mas eu canto" senti que falou diretamente comigo, principalmente os versos: "Quem sofre fica acordado / defendendo o coração", maioria das minhas noites são assim e eu não tinha noção de como descrever essa sensação
ResponderExcluirFico feliz que ele tenha conseguido voltar para sua cidade natal, mas fico triste que aos quase 94 anos ele tenha que ver um sombrio vento da ditadura soprar novamente o país :c
ResponderExcluirObrigado por esta preciosa partilha, desconhecia o poeta.
ResponderExcluirBeijinhos
Aprecio profundamente a poesia brasileira e este é um grande poeta! Que bom encontrá-lo aqui.
ResponderExcluirBJS
Magnífica selecção e partilha!
ResponderExcluirConfesso que desconhecia por completo este autor... que adorei descobrir, e apreciar por aqui!...
Beijinhos! Feliz semana!
Ana
Alguns poemas dão para perceber que se trata de um bom poeta. Poeta que não se conforma com a opressão.
ResponderExcluirGrata pela partilha, caro amigo Ulisses.
Um beijo.
Una felicidad que el poeta Thiago de Mello, aún viva, por esas razones de su poesía contra los regímenes despóticos, que lo llevaron a un penoso exilioLo primero que leí de él, como presentación de un libro de leyendas, fueron estos versos:
ResponderExcluirLa leyenda, por ser leyenda, es verdadera.
Por ello diré que, aunque transmitida
por mi boca – ciénaga de engaños –
es de verdad la herencia que te dejo.
Por verdadera, penetra sobre el tiempo
de las cosas sucedidas que ella cuenta,
de las cuales en el mundo no existen señales.
Solo declaran su tiempo cosas concluidas,
las que perdieron habla pero balbucean
cuando, por locos, vamos despertándolas
en sus tristes tumbas abiertas.
Los ojos inmutables de la verdad
nos espían planeando sobre el tiempo.
Pena, no obstante, que no quede sombra o rastro
de lo que floreció en los dominios de la leyenda.
Por más que se anden leguas y se excaven
planicies y peñascos se derrumben,
no se encuentran vestigios, salvo de los dos
que, hermanos de la leyenda, permanecen intactos:
el hombre y el mundo – siempre recusados
porque son evidentes, son las únicas
señales que prueban todas las verdades.
La leyenda, por ser leyenda, es verdadera.
Pues lo propio de las leyendas es la verdad.
Un abrazo. Carlos
Olá, Ulisses! Tudo bem?
ResponderExcluirJá tinha vindo ler a postagem, mas no dia não comentei. Preferi ler e pensar... agora chego pra comentar e encontro essa apropriada postagem sobre os "ventos do nazismo..."
Conhecia Thiago de Mello só de ouvir falar rsss! Amei os poemas, obrigada por dividir com a gente o seu conhecimento.
Ainda bem que a gente tem a arte e a poesia, graças por isso!
Um abraço,
Bom dia de muita paz interior, amigo Ulisses!
ResponderExcluirVenho da Ana Freire,. Adoro Tiago de Melo e sua doçura.
Já postei o "faz escuro e eu canto" ... Gosto muito.
Tenha dias felizes e abençoados!
Abraços fraternos de paz e bem