17 de outubro de 2018

Chico Nostradamus Buarque


No documentário intitulado "Vai passar", lançado em 2005, Chico Buarque falou sobre uma possível ascensão de um líder autoritário no Brasil: 

"Hoje em dia a gente já percebe nesse mesmo pensamento da classe média uma certa vontade de ordem em nome da segurança, disso e daquilo. Leitores em cartas a jornais explicitam desejo da volta de um governo forte, no sentido de repressão, por causa da violência. Esse pensamento não acabou."

"Não imagino uma coisa como um golpe militar. Mas não imagino como uma coisa tão absurda, amanhã, um líder populista, com discurso autoritário, em nome da segurança, contar com apoio popular muito grande. Com apoio popular, e democraticamente eleito, exercer o governo de forma autoritária, como foi. Não imagino a ditadura como ela foi, mas outra coisa. Os efeitos violentos dela, a truculência, a arbitrariedade estão lá."

15 de outubro de 2018

14 de outubro de 2018

Dirceu Villa: "ratos brotando dos bueiros"

você sabe bem que eles são roedores,
e como também são infectos: ratos,
eles se escondem até que então saem,
ratos dos grandes, com muita energia
nervosa, cheios de peste nas presas,
furtivos não mais, animais coletivos,
mas sempre covardes de esgoto na
espessa violência de grupo: a sujeira
em suas línguas de ralo ergue os ratos
do escuro e velho buraco; não vivem
de resto ou rasteiro: reis na ratice,
nos golpesditam as regras de ratos
pra todo mundo que seja um bom rato
como eles - às vezes, num país inteiro,
às vezes depois de fugir, por uns bons
30 anos. quem não é rato, cuidado:
pois há ratos brotando dos bueiros.

10 de outubro de 2018

Wislawa Szymborska: "Autotomia"

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.


In: Um amor feliz. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p.142

7 de outubro de 2018

Bozonaro, bufão "cristão" e "cidadão de bem"


Independente de partidos políticos, o que busco, antes de tudo, é seguir o bom senso e não apenas o senso comum, não sou boi para seguir determinadas boiadas, e muito menos quando essas determinadas boiadas vão em direção ao que fere e marginaliza a existência de tantos outros seres que existem. A grande maioria dessas pessoas que estão por aí exibindo bandeiras do Brasil nesse momento, ou carregando a bandeira estampada sobre o peito na camiseta, votam usando apenas a primeira pessoa do singular, não a primeira do plural, pensam apenas em si mesmas, são egoístas e, na verdade, bem na verdade mesmo, não é exatamente com a situação do país que elas estão preocupadas, preocupam-se é com seus próprios umbigos, com seus próprios confortos, bens materiais, casas, carros, com suas próprias vidas, não têm, no fundo (nem no raso) um sentimento de empatia pelos outros, não têm a capacidade de um olhar verdadeiramente mais compassivo sobre a vida dos outros seres, inclusive os bichos.

A questão aqui não é defender partidos políticos, vai muito mais além, é muito mais profundo do que isso, trata-se dessa imensa onda antipetista sobre a qual uma massa gigantesca de gente está surfando e que, neste momento, faz com que muitas dessas pessoas sejam ignorantes ou até mesmo se tornem fanáticas e cegas a ponto de quererem entregar o país para ser governado por um ser como o Bolsonaro, um boçal, um bufão que tem a incrível capacidade de cagar pela boca, um fascista. O problema não é fazerem críticas a um determinado partido ou serem contra ele, é acharem que alguém como o Boçalnaro, especificamente, possa representar algum tipo de salvação ou avanço para o país ao mesmo tempo em que desconsideram completamente tudo aquilo que esse sujeito pode representar como retrocesso. 

Embora quase todos já saibamos de muitas das declarações feitas por esse sujeito (e mesmo assim nenhuma delas fez com que a maioria repensasse sua opinião sobre ele), ainda assim citarei aqui algumas (apenas algumas dentre tantas que eu poderia), e não porque eu acho que com isso eu vou conseguir mudar o pensamento de alguém, cada um tem o direito de seguir as ideias de quem quiser, obviamente, mas, se isso não serve para fazer alguém mudar seus posicionamentos, então fará, no mínimo, com que neste momento quem estiver lendo esse texto, seja lá quem for, lembre bem quem é esse homem e o que ele representa: 

- Ele disse alguns anos atrás que o erro da ditadura no Brasil foi torturar e não matar (embora a ditadura tenha matado), assim como sobre a ditadura chilena disse que o Pinochet (outro "docinho" da mesma laia) deveria ter matado mais gente.

- Em seu discurso a favor do impeachment da Dilma, Bolsonaro homenageou o Coronel Brilhante Ustra, aquele que foi responsável por torturar mulheres na época da ditadura introduzindo insetos e roedores nas suas vaginas (sim, esse homem que muitos admiram, admira alguém que introduziu ratos nas genitálias de algumas mulheres).

- Reclama muito das fake news, mas ele e seus filhos são os que mais as espalham por aí (e para que fique claro, todas essas informações contidas aqui foram retiradas de vídeos ou entrevistas em que o próprio Bozonaro deu essas declarações, basta averiguar inclusive no YouTube).

- Recebeu 200 mil reais da JBS, investigada na operação "carne fraca", e disse que devolveu o dinheiro ao partido, mas admitiu que o partido mandou de volta a mesma quantia para ele em sua conta logo depois. 

- Sobre a escravidão, disse que os portugueses nunca pisaram na África, atribuindo aos próprios negros a responsabilidade pelo tráfico negreiro (além de tudo é burro, sabe ainda menos da História do que de economia).

- Disse que usava o auxílio-moradia para "comer gente", sim, nesse caso ele disse "gente", porque em outra circunstância ele já admitiu, e rindo, que "comia" bichos também, e comer de modo não literal mesmo, não com a boca (o grande representante da família tradicional brasileira, dos "bons" costumes, cidadãos de "bem", com valores "cristãos", inclusive é amigo de Marco Feliciano e Silas Malafaia, por exemplo, e nesse caso só me vem à mente a seguinte frase: diga-me com quem andas que te direi quem és).

- Disse que "ninguém gosta de gays, a gente suporta" (além de estupidamente ignorante é tão estupidamente arrogante que acha que pode falar por todos baseado em um preconceito que ele mesmo tem).

- Disse que não contrataria um motorista gay para levar seu filho na escola (para muitos, pode não parecer uma afirmação grave, mas através dessa lógica, o que ele dá a entender é que todos os gays, e somente os gays, são pedófilos, e não existem pedófilos héteros, inclusive mulheres?).

- Em entrevista para o ator britânico Stephen Fry (que depois da entrevista disse que aquela havia sido uma das experiências mais sinistras que ele já teve na vida), disse que "não existe homofobia no Brasil", mas, em outra circunstância, disse que já foi alvo de "heterofobia" (não existe homofobia no Brasil, um dos países que mais matam LGBTs no mundo?).

- Disse: "Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí", e que se tivesse um vizinho homossexual, a casa dele seria desvalorizada (o que comentar sobre alguém que diz que preferiria ver até o próprio filho morto baseando uma afirmação dessas apenas em orientação sexual? E mesmo assim, com todas essas declarações, há muitos que dizem que Bolsonaro não é homofóbico, não, imagina, inclusive de uns tempos para cá ele adotou um discurso até mais liberal, mas é óbvio que isso é apenas discurso, afinal ele estava em campanha eleitoral).

- Disse que teve quatro filhos homens e que aí deu uma "fraquejada" e a quinta nasceu mulher (nascer, ser mulher "vale menos" do que nascer, ser homem? Podem dizer o que quiserem na tentativa de amenizar a declaração machista, a frase foi dita e contra isso não há argumento).

- Disse que caçar animais é um "esporte saudável", declarando apoio a esse bando de psicopatas a que chamam de caçadores, e que com ele a caça teria "burocracia zero" (para mim, apenas isso já seria o suficiente para eu nunca, jamais, votar nesse homem. Ele mesmo depois gravou um vídeo dizendo que estava falando "apenas" sobre o "controle de javalis", mas é mentira, porque no vídeo em que ele aparece falando sobre desburocratizar a caça no país ele deixou bem claro que a caça, na opinião dele, é um "esporte", e, o que é pior, "saudável"). 

- Já foi pego praticando pesca ilegal em Angra dos Reis (suave na nave! Mas isso não é "nada", e o que dizer sobre os quase 30 anos como parlamentar e nos quais ele nunca contribuiu de forma alguma para resolver a violência no Rio de Janeiro? É esse o homem que vai diminuir a violência no Brasil? E ele fazendo aquele gesto ridículo de arminhas com as mãos? Nesse caso, só rindo até por escrito do bufão Bozonaro: kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk).

- Em discurso a favor das vaquejadas para uma multidão em Brasília, disse que "não podemos aceitar o 'politicamente correto'", que querem uma "geração de maricas", que ali só havia "cabra macho, ou é homem ou é mulher, sem 'meio termo'" (um instante para eu vomitar). 

- Ele se diz "cristão", disse que já leu a Bíblia inteira e que "há bons exemplos ali" (quando penso em alguém como esse homem se dizendo "cristão", e também em muitos que o seguem e se dizem igualmente "cristãos", lembro sempre da seguinte frase escrita pelo Nietzsche: "no fundo houve um único cristão, e este morreu na cruz". Cristão escolhendo Bozonaro para presidente? Como li dia desses numa imagem que minha irmã me enviou, "não me espanto, na época de Cristo escolheram Barrabás").

- Disse em um comício: "Não tem essa historinha de Estado Laico, é Estado Cristão, e quem for contra que se mude. Vamos fazer o Brasil para as maiorias, as minorias têm que se curvar, as minorias se adequam ou simplesmente desaparecem" (não faz lembrar do ditador Francisco Franco, que se autointitulava "líder militar pela graça de Deus", ou de Hitler ao assimilar aquele conceito da tal "raça superior", "a raça ariana", e que serviu de base para o extermínio dos judeus e de outros "povos não-arianos" e que também perseguiu homossexuais e negros?). 


Para muitos, milhares, milhões, "Deus" é o dinheiro, esse é o verdadeiro deus de determinadas pessoas, são capazes de qualquer coisa por ele, e para muitos desses, há uma frase que é, na minha opinião, uma das mais geniais que já disseram no mundo: tem gente que é tão pobre, tão pobre, que a única coisa que tem é dinheiro (alô, Trump!). Sim, dinheiro é necessário, faz girar as engrenagens do desenvolvimento econômico e social de um país, de uma sociedade, mas há gente que é corrompida por ele, que por ele vende até a alma, que o idolatra, assim como muitos idolatram um sujeito como o Bozonaro e por ele também são capazes de qualquer coisa, inclusive até mesmo passar por cima da importância de pessoas que os rodeiam, amigos, até mesmo pessoas de suas próprias famílias. Há pessoas que fazem parte das nossas vidas e que às vezes durante algum tempo parecem até mesmo respeitar as diferenças, com um discurso de inclusão, etc., mas que, em determinado momento, revelam-se, mostram quem verdadeiramente são e o que verdadeiramente pensam e priorizam, e esse momento pelo qual estamos passando pode servir bem como exemplo. Mas uma coisa é conviver com as diferenças, de pensamentos, inclusive, e outra coisa é conviver com determinadas pessoas que, por exemplo, aparentemente são solidárias, compreensivas, mas de algum modo uma hora nos apunhalam e, assim, nos evidenciam uma falsidade da qual eu quero me manter sempre distante, afinal já existe gente demais no mundo tentando de alguma maneira nos diminuir e não vou perder tempo com pessoas que às vezes tentam fazer a mesma coisa e com a diferença de que se camuflam de nossas amigas, o que é muito pior. 

Não sirvo de bom exemplo para nada, nem quero servir, erro bastante, principalmente comigo mesmo, mas nesse caso a vida com a qual eu erro é a minha própria, e enquanto a minha vida for minha, posso até mesmo estragá-la o quanto eu quiser, se eu quiser, a responsabilidade das minhas irresponsabilidades comigo mesmo é minha. Mas, para além dos nossos umbigos, das nossas casas, das nossas próprias vidas, há muitas coisas que acontecem e que também podem ser, e são, de muitas formas, direta ou indiretamente, responsabilidades nossas, consequências das ações de cada um de nós, inclusive o que dizemos e até mesmo o que deixamos de dizer geram consequências. Há gente que, por exemplo, para não se comprometer, por receio de entrar em atrito com outras pessoas, com os pais, amigos, desconhecidos, etc., ou por covardia mesmo, prefere silenciar e, muitas vezes, estar dessa forma compactuando com o que está errado, com o mal, com as injustiças. Bozonaro, por exemplo, pode até se tornar o novo presidente do país, mas ao menos saberei para sempre que com a minha contribuição não foi, porque eu sou dos que pensam que o tal progresso que está escrito na nossa bandeira deve ser para todos, e não somente para determinadas pessoas. Um bufão como o Bozonaro, que não é capaz de governar nem a própria língua (comandada por uma mente tão pequena e ao mesmo tempo tão nociva), não deveria jamais governar um país. Quase 500 anos antes de Cristo, Sófocles escreveu, em Antígona, que o amor é invencível nas batalhas. Há homens que eventualmente vencem, ou perdem, mas quanto ao amor, o amor sempre triunfará. 


2 de outubro de 2018

Regina Schöpke: "A crueldade humana"


Quando o escritor português José Saramago afirmou que os animais podem ser selvagens, mas que apenas o homem é cruel, ele estava chamando a atenção para um fato bastante inquietante, que subverte profundamente a imagem que temos de nós mesmos. Ele estava dizendo, da maneira mais clara e assustadora possível, que a crueldade é um fenômeno humano (e não animal). Uma afirmação que, sem dúvida alguma, põe em jogo duas certezas bastante arraigadas em nós: a de que o excesso de agressividade está relacionado à nossa herança selvagem e a de que a razão fez do homem um ser realmente superior.

De fato, do ponto de vista moral e ético, a ruptura que o homem fez com a vida natural não parece ter feito dele um ser melhor. É claro que se pode alegar que somos superiores exatamente porque somos os únicos animais capazes de desenvolver uma moral e uma ética, mas isto também não depõe muito em nosso favor, já que também somos os únicos a realmente precisar delas, já que os animais vivem integrados à natureza e nunca transgridem as suas leis. Sim, é exatamente isto: é porque os homens transgridem suas próprias leis e, sobretudo, é porque a nossa espécie é a única capaz de cometer atos bárbaros por prazer ou descaso com a dor alheia (como diz Saramago, um animal jamais tortura ou humilha o outro), que precisamos de leis que regulem a vida em sociedade. Sem dúvida, a justiça é uma necessidade, mas exatamente porque nós, os ditos “animais racionais”, ainda não aprendemos a respeitar a existência alheia.

Sem dúvida, vendo à distância o mundo humano, com tanta desigualdade, miséria, guerras, exploração e escravidão (humana e animal), é difícil acreditar que somos realmente seres racionais, compassivos e sensíveis. E, no entanto, apesar de tudo, é isto o que somos, pelo menos, potencialmente (eis porque, quando a razão e a sensibilidade se aliam no homem, ele é capaz de produzir uma existência verdadeiramente bela e ética). No entanto, o problema é que, na prática, o homem se comporta sempre aquém das suas potencialidades e aí, sim, cabe-nos perguntar por que o homem pode tanto e atinge tão pouco?

Decerto, alguns responderiam: “ele não pode: isto é uma falácia!” Outros, por sua vez, diriam: “ele pode, basta querer!” Pois tanto os primeiros quantos os segundos se equivocam: os primeiros estão mergulhados no pessimismo que, certamente, tem sua origem (até certo ponto justa) numa visão clara do que tem sido a vida humana; já os segundos são otimistas demais, acreditando que a vontade é livre o suficiente para escolher. Os dois erram, porque, de fato, o homem pode mais, mas seus valores o dirigem de tal maneira que é preciso, primeiramente, que ele se liberte de seus antigos grilhões, ou seja, que se liberte dos conceitos e das ideias que o tornam prisioneiro das circunstâncias, que o tornam passivo e resignado diante de um mundo que ele não acredita poder mudar.

Aqui entramos no cerne da questão: as sociedades se estruturaram, desde os seus primórdios, de modo a beneficiar alguns em prol de outros (eis porque, desde o início, os homens escravizam outros homens e também os animais). Esta é a origem da exploração e das desigualdades. É assim que nos acostumamos, desde cedo, a usufruir de outras vidas, aprendendo a fechar os olhos para a crueldade e para a tirania, como se elas fossem naturais em nós, quando, de fato, elas expressam o adoecimento da nossa espécie. Sim, a inversão do pensamento começa aqui: não somos primeiramente seres selvagens e maldosos que se aculturam e se tornam sublimes. Como um animal dentre outros, nós possuímos censores naturais que nos impedem de ultrapassar certos limites; mas, em sociedade, somos criados para obedecer regras inventadas pelos próprios homens e é aqui que tudo se complica e se confunde. Afinal, é a própria sociedade que nos ensina o descaso com a dor alheia, dos homens e dos animais. E, assim, como todos os demais, acabamos ou explorando os outros diretamente, e sem culpa, ou usufruindo, também sem culpa, dos benefícios da exploração. Afinal, temos o consentimento da própria sociedade para sermos pequenos tiranos.

Existe, de fato, uma razão perversa para que os homens sejam mantidos de olhos fechados. É que é preciso que eles continuem na escuridão e na servidão dos valores para que a desigualdade, a exploração, a escravidão, continuem existindo. Este é o maior de todos os atavismos humanos: aprendemos a nos beneficiar dos outros, aprendemos a ser, na verdade, imorais, antiéticos. É a nossa moral que tem sido, há milênios, uma falácia. Triste condição a nossa: somos vítimas de nossa própria inteligência superior. Na ânsia de fazermos parte do mundo, de nos integrarmos ao nosso meio social, apertamos ainda mais os nossos grilhões, tornamo-nos escravos e, ao mesmo tempo, agentes de nossa própria servidão. Servidão voluntária e até mesmo desejada, porque é mais fácil viver como todos os demais do que abrir os olhos e tomar nas mãos a própria vida.

De fato, é difícil mudar… mas andar também é e, no entanto, basta darmos os primeiros passos que os outros se seguem facilmente. Quase tudo no homem é hábito, é aprendizado. Por isto, a educação é tão fundamental e, mais ainda, uma educação que se volte para produzir um homem verdadeiramente superior, moral e eticamente falando. No fundo, por mais polêmica que pareça esta afirmação, o que resiste em nós de mais sublime é exatamente o nosso instinto mais elementar, que nos sopra aos “ouvidos” que agimos mal o tempo inteiro. É nossa saudável razão natural (como diria Nietzsche) que nos alerta, e não o que homem tem chamado de moral. Na verdade, não é nossa animalidade que precisa ser extirpada; é nossa falsa humanidade.

Sem dúvida, somos animais incríveis, somos os criadores dos mais belos conceitos e valores, mas também somos facilmente corrompidos pela ambição, pela ganância, pela vaidade e, para atingir nossas metas ilusórias de felicidade, usufruímos de outras vidas sem qualquer pudor. Com relação aos animais, esta realidade é ainda mais terrível, porque quase ninguém considera a sua dor, o seu sofrimento. É assim que milhões de vidas são brutalizadas, humilhadas, mortas todos os dias, sem qualquer piedade. É por isto que, mesmo quando somos vítimas, somos também responsáveis pela crueldade que nos atinge. Afinal, a crueldade, mais do que a racionalidade, tem sido o principal atributo do homem. Eis uma verdade dolorosa, mas que é preciso encarar se desejamos mudar o que precisa ser mudado. Na verdade, o homem não tem sido, nem de longe, o animal superior que julga ser.

Falando agora mais diretamente sobre a origem da crueldade humana, cito o grande historiador das religiões Mircea Eliade, que nos revelou algo de muito valioso em sua monumental obra “História das crenças e das ideias religiosas” (algo que endossa o que dizemos aqui a respeito do aspecto “contra-natura” da crueldade): o homem, inicialmente, não matava (nem mesmo para comer). Isto quer dizer que não somos originalmente nem carnívoros nem onívoros, e esta é uma informação que a ciência não deveria nos sonegar. Aliás, segundo as pesquisas de Eliade, toda a história posterior do homem é marcada exatamente por esta decisão que ele tomou no início dos tempos: a decisão de “matar para sobreviver”. Não vamos entrar na questão propriamente dita, falar da religião, que, segundo Eliade, está na base desta cruel decisão. Precisamos apenas entender que o homem tornou-se, de fato, o senhor da natureza, mas não por ser um animal divino ou por ser dotado de um espírito enquanto os outros seres vivos são corpos vazios; ele se tornou senhor da natureza porque tiranizou a vida, todas as vidas, inclusive a de sua própria espécie.

Sem dúvida, esta primeira violação da nossa natureza não poderia deixar de causar marcas indeléveis no homem e, assim, não parece nada equivocado concluir que este primeiro ato de barbárie deu origem a todos os demais. Afinal, o que poderia se esperar de um ser que age contra sua própria natureza? Ele só poderia adoecer, enlouquecer. Não é isto, afinal, que Nietzsche diz dos homens: que somos animais adoecidos, que perdemos nossa “saudável razão natural”? Nós nos perdemos de nós mesmos e nunca mais conseguimos nos encontrar. É isto que explica esta espera ensandecida por alguém que nos salve, que nos tire do fundo do abismo, quando, na verdade, bastaria apenas que olhássemos sem medo para dentro de nós mesmos. Sim, somos o que aprendemos, mas por baixo de todas as ideias, crenças, conceitos, existe um animal desesperado que clama por liberdade e por uma vida mais digna. A felicidade não está nos bens que se obtém no mundo, menos ainda nos que se obtém à custa da exploração e do sofrimento alheio; a felicidade está em ser pleno, forte e capaz de viver sem macular a si e aos outros. Isto, sim, chama-se respeito ao outro; não o que tem sido ensinado.

O homem inverteu a lógica da vida e assim produziu um mundo assentado na dor e no sofrimento. Sim, a vida tem dores e sofrimentos, já dizia Schopenhauer, mas o homem conseguiu multiplicá-las ao infinito. Não é a natureza que é cruel; somos nós: é isto que o homem se nega a ver. E ele vive tão imerso na dor e no sofrimento que chega mesmo a sentir-se atraído por eles; a se compor com eles, a lhes fazer elogios e a morbidamente saudá-los como inerentes à sua natureza. No entanto, a verdade é que, desde a infância, somos insensibilizados, adestrados para não reagir, para não sentir em demasia (nem amor, nem dor, nem compaixão, absolutamente nada… Descartes, de fato, confundiu as coisas: os homens é que se tornaram “máquinas sem alma”). Dito de outro modo: os sentimentos são em nós, desde cedo, aprisionados, dilacerados, considerados perigosos. Não se costuma dizer que a própria paixão é um perigo? Sim, o perigo da paixão é que ela pode nos desviar dos deveres que nos foram impostos pelo mundo; deveres aos quais aprendemos a obedecer como autômatos, mesmo quando eles nos rebaixam como seres humanos.

Dito de modo mais claro: somos escravos de um mundo que nós mesmos construímos (e cada um põe um tijolo nesta construção enquanto não desperta deste longo torpor, deste anestesiamento moral que subverte nossa natureza e nos rouba a liberdade de sermos aquilo que somos: seres verdadeiramente humanos). É assim que todo homem permanece preso num círculo vicioso, aparentemente insolúvel, até que comece a dizer “não” para a crueldade, seja ela dirigida aos outros homens ou aos outros animais (certamente, as maiores vítimas deste mundo). É um caminho árduo, sem dúvida, mas como poderia ser barato o preço da liberdade e da plenitude humana depois de tanta inversão de sentimentos e ideias?

Este é o verdadeiro começo: o primeiro “não” é sempre mais difícil, mas, depois do primeiro, outros se seguirão, e a cada “não” a nossa força aumenta, porque ela é proporcional ao nível da nossa libertação. Este é o maior legado que podemos deixar para as próximas gerações: libertar todas as vidas. Aliás, esta já é a condição para que as novas gerações sejam possíveis, porque a natureza não tolera mais a tirania humana. Ou fazemos algo agora ou é a natureza que seguirá sem nós: isto é um fato. Porque gostando ou não da ideia, não é a natureza que precisa do homem, somos nós que dependemos da natureza. Nós somos partes dela, e não o contrário. É por isto que libertar os animais é também libertar o animal humano da sua doença; é dar a ele uma nova possibilidade de existência que seja mais bela, mais ética, mais verdadeiramente racional.

29 de setembro de 2018

morte e vida


a morte não nos diferencia por crenças, ideologias, cores, deseja todos igualmente para si, mortos somos todos igualmente mortos, enquanto vivos (ainda que vivos estejamos igualmente vivos aos que ainda estão vivos) não somos todos iguais, a vida é seletiva, a morte não, ela não nos diferencia, diferentes são as formas de morrer, como diferentes são as formas de viver, estar vivo, ser, morto é uma forma só, vivos somos todos diferentes, o contrário do que dizem na tentativa de nos homogeneizar, e porque esperam que sejamos todos iguais é que há tantos tipos de intolerâncias que reverberam pelo mundo, os vivos estampam sortimentos, prateleirizam sentimentos, engavetam pensamentos, que a morte nos liberta de todos, dos que sobre nós mesmos temos e sobre os outros, a vida é pluralidade e portanto saber-se único entre tudo o que nos diferencia e também nos assemelha, mas que ainda assim não nos torna iguais: diversidades, oscilações, diferentes tons, sons, contratempos, contagem, sopro, chama acesa, a vida é verbo, composição, e a morte (para todos o mesmo inevitável silêncio), cinzas ou decomposição. 


(imagem: Klimt)

26 de setembro de 2018

ressignificância

quando, desbragadamente,
tu desprendias palavras
das pontas dos dedos,
quando, em qualquer tom,
a tua língua solta, ácida
- chama ardendo
acesa apascentando
teus demônios -,
rasgava o verbo, os recatos,
teu corpo inteiro transparente,
a cabeça e tuas extremidades
revelavam tudo o que hoje,
aparentemente protegido
sob uma armadura qualquer,
segue em guerra dentro de ti
(falava mais que o homi da cobra,
agora silêncio é escudo)

24 de setembro de 2018

(im)permanência


meu corpo, a minha voz
meus tropeços, tudo em mim
será até quando,
um somar anuários
- de carne e osso
sou sujeito a durar pouco
(o que vinga a existência,
acesso ao infinito, é pedra:
em silêncio impondo sua forma,
não murcha sob - ou sem - a água)


(imagem: Paul Bond)

23 de setembro de 2018

panaceia

absorver máximas e cultivá-las
desenrijecer antigas estruturas
cá na Terra, vale até mesmo a fé
em um para-choque de caminhão
ou, se for ousar novos caminhos,
até trocar os pés pelas mãos
plantar bananeiras,
praticar infinitivos:
crer, infundir, buscar...
e, para nunca se arrepender
de não ter tentado, tentar.

20 de setembro de 2018

um espelho da ignorância humana


Texto de André Nascimento Pontes, 
professor de Lógica do Departamento 
de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas

18 de setembro de 2018

pareidolia

assisto ao final desta manhã:
sob o mesmo céu
os mesmos galhos
dessas mesmas árvores
balançam as mesmas folhas
(presas à vida)
e enquanto um velho
que fala ao telefone
carregando rugas e sacolas
nas mãos
vai sem pressa
sei lá para onde
(uma cara de:
"Ivone, vou me atrasar
para o almoço"), penso:
nesta cidade do Sul
da América do Sul,
onde o velho e eu
dividimos o mesmo céu,
há um cavalo gigante
sobre as nossas cabeças
- sim, sou desses
que veem desenhos nas nuvens.