12 de janeiro de 2020

8 poemas de Thiago de Mello



Como um rio

Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.

E de levar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade das funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, sabe seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.


***


O açude

Não sei nem jamais
saberei o nome
(se acaso tem nome)
do bicho que dorme
no escuro do açude
sem fundo que sou.
Nascido, senão
comigo, de mim,
é um bicho, ou como
se fosse; e que dorme.
Nem sempre ele dorme.
Talvez o agasalhem,
de sono enrolado,
as mais fundas águas
que em minha alma dormem:
- as águas e o bicho
num sono só, feito
de grávidos nadas
espessos e imóveis.
Mas nem sempre imóveis.
Um dia estremecem:
sem causa, e de súbito,
um tremor percorre,
longínquo, levíssimo,
o nervo das águas
- essas águas fundas
que enrolam, dormidas,
o sono do bicho,
que já não é sono:
mal findo o arrepio,
começa a lavrar
o incêndio no açude.


***


O silêncio da floresta

Tem consistência física,
espessamente doce,
o silêncio noturno
da floresta.
Não é como
o do vento e vastidão,
cujos dentes de neve
morderam a minha
solidão.
Nem como o silêncio
aterrador
(no seu âmago
o tempo brilha imóvel)
do deserto chileno
de Atacama, onde,
um entardecer,
estirado entre
areia e pedras,
escutei cheio
de assombro
o latir do meu
próprio coração.

O silêncio da floresta
é sonoro: os cânticos
dos pássaros da noite
fazem parte dele,
nascem dele,
são a sua voz
aconchegante.

Sozinho no centro
da noite amazônica,
escuto o poder mágico
do silêncio,
agora quando os pássaros
conversam com as estrelas,
e recito silenciosamente
o nome lindo
da mulher que eu amo.


***


Faz escuro mas eu canto

Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo,
companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir
para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada, vem o sol,
quero alegria,
que é para esquecer
o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.


***


Quando a verdade for flama

As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da escravidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.


***


Não aprendo a lição

A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.

Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça,
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.

A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.


***


Para os que virão

Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente,
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda
pessoa do plural.

Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.

É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.


***


Aprendizagem no vento

O vendaval findou.
Agora é só o vento
soprando a sua ferocidade
mais fria do que a pele
enrijecida e azulada
dos operários fuzilados.

O vendaval findou.
Agora é só o vento cotidiano,
implacavelmente morno,
hálito podre.
É com ele que se tem de aprender
a lição do revés, vida vivida.

Dos tantos que saíram,
poucos, muito poucos,
se reencontrarão um dia, tomara,
naquilo que foram
ou que não puderam ser.
Por enquanto, a cordilheira transposta,
o que se alteia
é o desvario da boca,
é cada vez mais o muro
entre a boca e a mão.

Aos que sonhavam mesmo,
vendo o claro,
e que puderam permanecer
no coração ardente da sombra,
cabe o labor maior
da aprendizagem.
É aprender com tudo
o que foi feito
e também com tudo
que deixou de ser feito,
como rasgar o caminho
da esperança que lateja,
que lateja, na frágua
da paciência operária.

O vendaval findou.
Telhados ocos
não poderão
servir de abrigo
a pássaros.




o poeta e tradutor Thiago de Mello nasceu na cidade de Barreirinha, no Amazonas, em 1926. desde cedo sua obra foi marcada pela identificação com a cultura de seu estado e pelo engajamento político e social. perseguido durante a ditadura no Brasil, exilou-se no Chile, onde permaneceu por dez anos (inclusive tornando-se amigo de Violeta Parra e Pablo Neruda, que traduziu para o espanhol os poemas de Thiago de Mello). durante o exílio, morou também na Argentina, na Alemanha, na França e em Portugal. com o fim do regime militar, voltou à sua cidade natal, onde vive até hoje. 

5 de janeiro de 2020

de dentro da gaveta da alma da gente



tem bem e mal e água e sal
que chora e bota fora
um temporal daqui
de dentro da gaveta
da alma da gente

tem sim e não no coração
que o tempo da beleza
é vendaval também
lá dentro da gaveta
da alma da gente

prefiro acreditar
que ser diferente
é rir dessa tristeza
que a gente sente
e tiro da cabeça
um carnaval sem fim
linda avenida
que essa vida faz surgir

vem ver o mar ser a música
que leva o teu caminho
muito além do azul
da tela da janela
da alma da gente

cuida do grão nessa multidão
só pra lembrar que o muito
é bom trocar por um
mergulho verdadeiro
na alma da gente

se tudo acaba
feito estrela cadente,
quem pode te dizer
que, daqui pra frente,
tem hora pra chorar
ou ser feliz, me diz?
não sabe nada, nada
quem não quer sorrir

vem ver o mar, ver o sal
ver o grão, ver o não
ver o fim, ver o bem, ser feliz
vem ver o azul ser a música
ver o sim, ver o mal, ver além
vem sorrir



música, letra e voz: Fernando Temporão
imagens: Leo Bittencourt e Ava Rocha
direção e edição: Ava Rocha


2 de janeiro de 2020

para o começo (e qualquer época) do ano






fragmentos extraídos
das páginas 96 e 203
do Livro do Desassossego
Fernando Pessoa - Barueri, SP :
Ciranda Cultural Editora, 2018.

19 de dezembro de 2019

um índio

um índio descerá de uma estrela
colorida, brilhante
de uma estrela que virá
numa velocidade estonteante
e pousará no coração do Hemisfério Sul
na América, num claro instante
depois de exterminada
a última nação indígena
e o espírito dos pássaros
das fontes de água límpida
mais avançado que a mais avançada
das mais avançadas das tecnologias
virá, impávido que nem Muhammad Ali
virá que eu vi
apaixonadamente como Peri
virá que eu vi
tranquilo e infalível como Bruce Lee
virá que eu vi
o axé do afoxé Filhos de Gandhy
virá

um índio preservado
em pleno corpo físico
em todo sólido, todo gás e todo líquido
em átomos, palavras, alma, cor
em gesto, em cheiro, em sombra
em luz, em som magnífico
num ponto equidistante
entre o Atlântico e o Pacífico
do objeto, sim, resplandecente
descerá o índio
e as coisas que eu sei que ele dirá, fará
não sei dizer assim de um modo explícito
virá, impávido que nem Mohammad Ali
virá que eu vi
apaixonadamente como Peri
virá que eu vi
tranquilo e infalível como Bruce Lee
virá que eu vi
o axé do afoxé Filhos de Gandhy
virá

e aquilo que nesse momento
se revelará aos povos
surpreenderá a todos
não por ser exótico
mas pelo fato de poder
ter sempre estado oculto
quando terá sido o óbvio.


(composição e voz de Caetano Veloso
no álbum Bicho, de 1977)



15 de dezembro de 2019

Gazeta de Poesia Inédita

meu poema intitulado corrente foi publicado na Gazeta de Poesia Inédita, do poeta português José Pascoal (autor dos livros Sob Este Título, Antídotos e Excertos Incertos, todos publicados pela Editorial Minerva, de Lisboa). aos que quiserem ler meu poema inédito, eis aqui o link: