8 de fevereiro de 2021

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: "Há metafísica bastante em não pensar em nada"


(o Sol e o rio Mampituba.
"Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.")


V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas, 
Mas que melhor metafísica que a delas, 
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

<<Constituição íntima das coisas>>...
<<Sentido íntimo do Universo>>...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, 
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



Fernando Pessoa
"Ficções do interlúdio: Poemas completos de A. Caeiro"
In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

17 comentários:

  1. UAU!! Poesia de gala para acompanhar uma foto dos deuses...LINDO post! abraços, chica

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  2. "Se eu adoecesse pensaria nisso", ora eu, embora não pareça, não sou aquilo que pareço. Aquilo que sabemos tem uma aproximação ao zero absoluto. Metafísica está no sol e na água, mas quem sabe explicar? Eu opto por contemplar e beneficiar dessas "graças".
    Fez bem trazer aqui Caeiro... Pessoa nunca é de mais.
    Abraço.

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  3. Dá a ideia que A. Caeiro, através da opinião de Fernando Pessoa, não gostava de nada e gostava de tudo. Era um poeta pensador que brincava com os seus próprios pensamentos. A Metafisica não é fácil de entender. É o tudo e nada e o enigmático fica no meio. Gostei da foto que é muito bonita.

    Cumprimentos

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  4. Não pensar em nada é por si só um exercício muito difícil de alcançar. Mas isto digo eu, que estou muito longe de ser Pessoa.
    A foto é magnífica e muito apropriada.

    Abraço

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  5. Belíssimo poema de Fernando Pessoa e toda a beleza que existe no mundo são obras de Deus, mesmo pra quem não acredite nisso. Gostei da leitura, excelente.
    Um abraço!

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  6. Me gusta ese poema de Pessoa, saludos amigo, cuídate.

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  7. Gracias por descubrirme a Fernando Pessoa. Me ha gustado mucho el poema!
    Un abrazo Ulisses :)

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  8. A foto é belíssima. Tudo que lemos e que nos move os pensamentos, tem valor inestimável. O grande poeta questiona, mas já tem as respostas, eis que habitam seus sentimentos. Abraço.

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  9. Um poema que nos faz pensar, não fosse ele de Pessoa, um pensador por excelência!
    Obrigada pela partilha.
    Um abraço.

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  10. Fernando Pessoa foi um grande poeta que nos surpreende a cada verso, seja qual for o heterónimo em causa. A sua obra é notável, e vale a pena lê-la e relê-la, dezenas de vezes que seja.
    Bom fim de semana, caro Ulisses.
    Abraço.

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  11. Sensacional!! É tudo que penso, a maior contradição é amar um deus e não respeitar o que dizem ele criou, não viver em harmonia com tudo que nos cerca além de nosso pequeno umbigo no universo.
    Abraço, Ulisses!

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  12. Olá, Ulisses!

    É excelente a imagem e o pensamento que a acompanha. A natureza é uma revelação permanente. E eu caminhei devagarinho no poema de um autor em que tropeço com prazer.

    Beijos.

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  13. A tua imagem, não poderia complementar melhor, esta fascinante reflexão de Pessoa! Um poema que muito aprecio... e que é sempre fascinante, descobri-lo de novo, uma e outra vez... Pessoa tem sempre essa capacidade de frescura e renovação da sua escrita, produzindo como que um verdadeiro amanhecer, na alma da gente...
    Adorei o post! Beijinhos! Boa semana!
    Ana

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  14. O "Mestre" Alberto Caeiro a dar cartas sobre ideias feitas e o modo
    como vemos o mundo e tudo o que o envolve. Quase nihilista,aqui, o nosso
    poeta das sensações.

    <>...
    <>...
    Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
    É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
    É como pensar em razões e fins"

    Abraço
    Olinda

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