Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o
real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso
da América.
Nestas terras, a cabeça do deus Eleguá leva a morte na nuca e a vida na
cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem
as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade
possível e os delírios, outra razão.
Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade
não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese
das contradições nossas de cada dia.
Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança,
porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de
viver no mundo.
O livro dos abraços / Eduardo Galeano
tradução de Eric Nepomuceno
Coleção L&PM Pocket, 2015.