7 de setembro de 2018

amplitudes

I- dentre outros,
nossos nomes
(outros nomes
apenas)
rastros na vastidão
(do que somos)

II- do de dentro,
espaço do corpo
que habitamos,
quaisquer palavras
que nós deixamos
escapar
do céu da boca
são apenas meteoritos
sobre nossas línguas

III- também carrego um tanto
de alegria, outro de lama
reproduzo infinitos códigos
não impressos sobre a pele
estoque de mim mesmo
em diferentes tons - profusão de cores
e nunca esqueço de que, diferente do sol,
estrelas só podem ser vistas quando há escuridão


(imagem: Van Gogh)

palimpsesto


não esperar entender
o que não se explica
do passado que margeia
sem sentido, algum ponto
debaixo de tudo o que há sob
todas as razões de já terem sido
e deixar que camada por camada
entre os anos, antigas palavras
desfaçam-se a olho nus
para que dentro de si
possam restar somente
aquelas que habitam vivas.

algumas luas depois


tentas ver mais que a escuridão, teto da noite em que te fechas, espessa de ti mesma (um bocado teu que treme), como quando falas com as mãos em gestos largos (trêmulos), um jeito de quem nunca sabe onde deixar que elas repousem. agora, trancamo-nos no frio de nossos movimentos quase inertes, mas ainda existimos em tudo o que é nosso e sempre será. nas palavras perdidas sobre os diários, nos dias intermináveis, nas horas cinzas, nas histórias que penso ser capaz de escrever, pensamos. mas o que sei eu da tua vida? o que sabes tu da minha? no entanto, escrevemos, sem medo da queda, pois que do chão não passamos.


(imagem: Diana Bellatrix)

vermelho


de repente invento
um jeito de te olhar
como quem não quer nada
querendo tudo
só para ver se venta
pode ser também
que eu te arranque
os olhos grandes da cara
e os coloque no lugar dos meus
para que com eles
eu te olhe sob o teu olhar
numa noite morna como essa
abafada e sem razão
quem disse que era preciso?
se desde sempre entre nós
não houve lógica
que o que sentimos não era divisão
entre braços intrusos
mãos que escorregam sempre bobas
à procura de um canto pelo corpo
olhamos
porque ainda são vermelhos os olhares
e o desejo: boca que tu pintas
só para veres manchar o cigarro.


(imagem: Charlotte Gainsbourg por Jean-Baptiste Mondino)

órbita


somos mais do que o que dizemos
ou ainda podemos ser menos -
dizer é também ficar restrito
como olhar para trás da órbita
e enxergar apenas um detrito
do universo inteiro
que por dentro temos.

decifra-te ou devoram-te


não nos levemos tão a sério, descobrimo-nos na imperfeição. tudo ainda existirá depois de nós, mas nenhuma gota de sangue será eterna. o chão de Nazca já existia antes dos seus desenhos, que somente a natureza, incorruptível, saberá conservar (porque a natureza nunca precisou de ensinamentos). os tigres não precisam de filosofia, as hienas, as zebras, os pássaros... e nós caçamos milhares de porquês para os nossos instintos. já fizeste uma comparação para perceber a incrível diferença entre um bando de leões sobre um deserto e uma multidão de pessoas sobre algum lugar cimentado? as vozes atropelam muito mais do que os veículos, muitas cabem em um mesmo metro quadrado. quantas dentro da tua consciência?

desregrar-se





só se encontra
quem se perde
(tantos são
os caminhos tortos)

andar na linha
qual um trem
é saber aonde ir

mas também
correr o risco
de só andar
preso ao chão

e para sempre
levar consigo
uma aflição
permanente
da possibilidade
de descarrilar-se.


(imagem: JMW Turner)

dos devires



nada é.
tudo está.
o corpo que habito,
as chagas, as árvores,
as fachadas das casas, das igrejas,
os lençóis sujos dos puteiros,
a saliva dos monges,
as línguas bifurcadas das cobras,
dos seres vivos à matéria inorgânica,
tudo denuncia a passagem do tempo:
existir é transmutar.


(imagem: Hundertwasser)

antimatéria


antes de tudo, escrevo.
do contrário, apenas rabiscaria
papéis em um escritório.
contaria cédulas e moedas em um banco.
ou trabalharia em uma repartição pública.
chegaria em casa às vinte horas,
faria a janta e assistiria à novela,
a um filme ou ao jogo de futebol.
depois, sem pensar em nada de mais,
sem chance para as lucubrações,
apenas esvaziaria da mente o longo dia,
números, contas, asfaltos, obrigações.
veria a cama,
que seria somente uma cama,
fecharia os olhos e dormiria.
no outro dia, calçaria os sapatos,
escovaria o cabelo, os dentes,
tomaria o café da manhã lendo o jornal,
que seria somente um jornal,
e voltaria ao local de trabalho,
talvez depois de brigar com o relógio,
talvez pontualmente.
viveria assim, burocraticamente.
e enchendo-me de cotidiano,
até o limite onde eu transbordaria,
haveria o risco de em mim
ainda caber um novo hábito:
entre o céu e a terra,
enxergar apenas o que é palpável.


(imagem: José Gurvich)

6 de setembro de 2018

inclassificável


não me defino.
ninguém pode nos definir.
nenhuma palavra
alcança-me por inteiro.
se quiserem me classificar,
que seja de inclassificável.
sou múltiplo, simples,
complicado, variável...
se tento cristalizar uma parte minha,
imediatamente uma outra me escapa.
portanto, não me resumo,
ainda que, às vezes,
goste de ir direto ao ponto.
no entanto, posso me encher de vírgulas,
afinal, quem não é cheio de entretantos?


(imagem: Violeta Parra)