19 de dezembro de 2019

um índio

um índio descerá de uma estrela
colorida, brilhante
de uma estrela que virá
numa velocidade estonteante
e pousará no coração do Hemisfério Sul
na América, num claro instante
depois de exterminada
a última nação indígena
e o espírito dos pássaros
das fontes de água límpida
mais avançado que a mais avançada
das mais avançadas das tecnologias
virá, impávido que nem Muhammad Ali
virá que eu vi
apaixonadamente como Peri
virá que eu vi
tranquilo e infalível como Bruce Lee
virá que eu vi
o axé do afoxé Filhos de Gandhy
virá

um índio preservado
em pleno corpo físico
em todo sólido, todo gás e todo líquido
em átomos, palavras, alma, cor
em gesto, em cheiro, em sombra
em luz, em som magnífico
num ponto equidistante
entre o Atlântico e o Pacífico
do objeto, sim, resplandecente
descerá o índio
e as coisas que eu sei que ele dirá, fará
não sei dizer assim de um modo explícito
virá, impávido que nem Mohammad Ali
virá que eu vi
apaixonadamente como Peri
virá que eu vi
tranquilo e infalível como Bruce Lee
virá que eu vi
o axé do afoxé Filhos de Gandhy
virá

e aquilo que nesse momento
se revelará aos povos
surpreenderá a todos
não por ser exótico
mas pelo fato de poder
ter sempre estado oculto
quando terá sido o óbvio.


(composição e voz de Caetano Veloso
no álbum Bicho, de 1977)



15 de dezembro de 2019

Gazeta de Poesia Inédita

meu poema intitulado corrente foi publicado na Gazeta de Poesia Inédita, do poeta português José Pascoal (autor dos livros Sob Este Título, Antídotos e Excertos Incertos, todos publicados pela Editorial Minerva, de Lisboa). aos que quiserem ler meu poema inédito, eis aqui o link: 

7 de dezembro de 2019

do que vale mais

montes de dinheiro, roupas de marcas caras, mansão, carrão, o tangível no aumentativo, arroto de caviar, veuve clicquot ou dom pérignon, alarde de diplomas, nutrição de flor de umbigo em rede social, barrigas chapadas em egos inflados, desfile de riqueza material, qualquer coisa com a qual o capiroto da ganância possa querer nos seduzir em troca das nossas almas, etc. e tal, nada disso me impressiona. impressionante mesmo, para mim, é quem enxerga além do que é palpável, descobre universos nas miudezas, no ínfimo e no grandioso da natureza, a Floresta Amazônica, o sol, é quem mostra também as próprias sombras, os anéis de Saturno, a luz da lua sobre o mar, as estrelas, aurora boreal, as pedras de Torres, a Praia da Guarita, da Cal, Machu Picchu no topo de uma montanha, o chão e o céu do Deserto de Atacama, do Saara, do Salar de Uyuni, o lago Titicaca, a branca imensidão da Antártida, da Groenlândia, a chuva, os raios, o voo dos pássaros, os olhos das corujas, dos lobos, dos peixes, a sobriedade elegante dos gatos, a força e o instinto de coletividade das formigas, das abelhas, a pureza do meu cachorro, dos outros cachorros, os bichos todos, pois não precisam de filosofia, banho de loja, sabem a que vieram e não se perguntam de onde e por quê. afinal, como disse José Saramago, "o instinto serve melhor aos bichos do que a razão serve aos seres humanos."

(curtindo o sol) 

29 de novembro de 2019

aos garis e margaridas

se os poetas
parassem de escrever,
nada de mais aconteceria
(poesia: com a qual
ou sem a qual,
o mundo
não continuaria
tal e qual?),
telas e papéis ainda
seriam fabricados
para morrerem
em branco
ou iluminados
enquanto o sol
para todos nasceria.

se os músicos
parassem de compor,
nada de mais aconteceria
(ainda que a música
possa ser para a alma
o que o alimento
é para o corpo),
as rádios continuariam
suas programações
com músicas
das décadas passadas
e os ouvidos passariam
a ouvir mais (quem sabe?)
uma voz que só pode
ser ouvida através do silêncio.

se os pintores
parassem de pintar,
nada de mais aconteceria
(nas cores que a gente pinta,
ainda a vida),
o céu continuaria
às vezes indeciso
entre o laranja e o violeta
às seis horas da tarde
e ainda haveria terra
em alguns tons de marrom
como os da mistura de tintas
das três cores primárias.

mas se os garis
e as margaridas
(imprescindíveis
a escapar das retinas)
parassem de varrer as ruas,
estaríamos todos sujos.

3 de novembro de 2019

cá da Terra



se apenas na parte
visível do Universo
existem mais
de cem bilhões
de galáxias
e em cada
galáxia
uma
média
de cem
bilhões
de estrelas,
estupidez
é ater-se
à língua
comprida
e bifurcada
de quem usa
telas e janelas
somente para
observar
a vida
alheia.



(imagem: foto de Carlos Fairnbairn)