26 de julho de 2019

criação

sobre quando foi concebido
o que não mais se acha
ainda restam verdades
que nem o tempo traz
- e leva para não contar... 
das retinas que espreitaram
os tetos das cidades
e os rastros das pegadas
desfeitas
sobre estradas
e outros lugares
antes feitos de água, 
rios e mares,

dos fósseis
jamais encontrados
no Deserto do Saara,

do instante no Egito
em que o vento beijou
pela primeira vez
uma pirâmide sobre o pico,

dos ancestrais
da África Atlântica, 

dos quinhentos anos
para trás
para toda gente
que não viu
o que existiu antes
nem mais para frente,

do que esteve livre
de morar em um livro
que antes de virar História, 
muito antes já estava vivo, 

do "descobrimento" do Brasil, 

da primeira pincelada
em uma tela, 
de uma imagem
saída da cabeça
materializando 
o que existia dentro dela, 

dos segredos dos papéis
que embrulharam peixes
em algum ponto do Norte
ou do Sul da América do Sul
tingindo escamas como aquarela, 

até de quando foram dados
nomes às coisas, 
quando veio a lume 
- em todas as línguas -
a palavra: criação. 

23 de maio de 2019

Torres por mim

a cidade de Torres comemorou 141 anos de emancipação política administrativa no dia 21 de maio. esse lindo lugar em que eu nasci, que fica no litoral norte do Rio Grande do Sul e faz fronteira com o estado de Santa Catarina (com o Rio Mampituba dividindo os dois estados), é conhecido por suas praias, a ilha dos Lobos (uma pequena ilha em frente à cidade e que abriga lobos-marinhos e leões-marinhos em determinadas épocas do ano), seus morros (os paredões) e seu Festival de Balonismo, período do ano em que, além do verão, a cidade costuma receber muitos turistas. embora seja uma cidade pacífica, minha relação com ela nem sempre foi pacífica, houve muitos momentos em que tive a sensação de não caber nela, não me encaixar muito bem dentro da cidade. fui embora por volta dos 18 anos de idade e, desde então, morei em alguns outros lugares e foi nesses outros lugares que comecei a ter uma nova percepção (ainda bastante crítica, sempre, mas muito mais afável) sobre a cidade em que nasci e fui criado. com tudo que nela falta e sobra (como há sempre algo que falta e algo que sobra em qualquer cidade do mundo), eu amo Torres.


fotografias de minha autoria (de diferentes momentos pela cidade), exceto as duas últimas, que foram retiradas de um site de Torres (Viva Torres):





















19 de abril de 2019

animalium

ainda que qualquer bicho
seja melhor
do que qualquer pessoa,
todo ser humano -
o único animal
que é também
desumano -,
é um pouco rã,
coruja, lagarto...
transmuta-se
em diferentes cores
conforme as suas
circunstâncias:
às vezes se camufla
de imaculado, virtuoso
para no instante seguinte
ser torpe, ardiloso.
vivemos em um jogo
tartufo de interesses
ao paladar
de nossas próprias
conveniências,
por melhores que sejam
nossos intentos,
propósitos,
todos somos,
enfim, como escreveu
Eduardo Galeano,
o que fazemos
para transformar
o que somos.

2 de abril de 2019

traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa e pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


(poema de Ferreira Gullar
na voz de Adriana Calcanhotto)



28 de março de 2019

Hilda Hilst: "Compaixão também é política"


Já sei que tá cheio de gente sofrendo, velhos, crianças, mulheres, nordestinos, favelados, mas é preciso também fazer alguma coisa urgente e batalhar contra a crueldade em relação aos animais. Há algum tempo ouvi dizer que serravam cavalos vivos porque a dor fazia com que o couro ficasse macio... Fui vomitar ventando no meu pinico de barro. E depois comecei com aquilo tudo que vocês já sabem, a hora dos tamancos. Bem, continuando. Ouvi emocionada, há alguns dias, o relato de uma admirável jovem mulher, Mara Thereza, que há anos vem salvando cavalos doentes e abandonados, ou atados às carroças, com os cascos em carne viva, ou corroídos de sarna e de feridas, e aí ela, Mara, até pede para comprar, mas o dono diz: inda tá bonzinho, dona, veve mais uns dia trabaiando... E o bicho todo esfolado, sangrando. Eh... gente "simpres" e boa!

Em 1964, quando vim para Campinas, um amigo meu quis me levar à Hípica. Fui, achei tudo lindo até que me deparei com uma égua e sua cria num matagal ao lado. A égua cheia de carrapatos, doentíssima, e a cria também. Mas o que é isso? perguntei estarrecida. Explicação: a dona largou as duas aqui, não pagou o aluguel das baias e sumiu. Mas isso é um absurdo, eu disse. Vocês têm que tratar dos animais! Mas, não dá não, dona, não pagando não dá... De início, fiquei aos prantos, só olhando, depois em seguidinha, furiosa, perguntei se me vendiam as duas. Claro, deram graças a Deus, e graças a Deus minha mãe tinha uma fazenda e chamei um caminhão e levei-as, mas só a égua  foi salva porque a cria já estava muito mal. Alguns, que me viram comprar, sorriram e me chamaram de louca. Estou acostumada com tal rótulo e antes louca do que pérfida, nojenta e gélida, pactuando com a maioria dos humanos. Sou louca de compaixão sim, e é pena que eu não tenha poder nem dinheiro para salvar os animais das mãos dos humanos.

Se algum de vocês, leitores, puder ajudar de alguma maneira Mara Thereza, essa admirável jovem mulher, ou aceitando um sofrido animal em sua chácara ou no seu terreno cercado, ou às vezes emprestando um caminhão para tirar o animal de algum inferno ou do carrasco, escrevam para este jornal, aos meus cuidados, e os competentes façam leis, senhores, leis severas para os carrascos de animais, há carrascos em demasia no mundo, há também todo o meu asco e o Pessoa dizendo mais ou menos isso: hoje vomitei o mundo na pia. Eu também. Com licença. Vou indo.

Sobre o vosso jazigo
- Homem político - 
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens. 
Sobre os vossos filhos
- Homem político - 
A desventura do vosso nome. 

(segunda-feira, 19 de abril de 1993)

Hilda Hilst
em Cascos & carícias & outras crônicas
São Paulo : Globo, 2007.

(Cascos & carícias & outras crônicas é uma seleção de crônicas que Hilda Hilst produziu para o jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995) 

17 de março de 2019

el placer de servir

(na ponte sobre a Lagoa do Violão)


“Toda la naturaleza
es un anhelo de servicio; 
sirve la nube, sirve el aire, sirve el surco. 
Donde haya un árbol que plantar,
plántalo tú; 
donde haya un error que enmendar, enmiéndalo tú; 
donde haya un esfuerzo que todos esquiven, acéptalo tú. 
Sé el que aparte la estorbosa
piedra del camino,
sé el que aparte el odio
entre los corazones 
y las dificultades del problema. 
Existe la alegría de ser sano
y de ser justo; 
pero hay, sobre todo, la hermosa,
la inmensa alegría de servir. 
¡Qué triste sería el mundo si todo en él estuviera hecho, 
si no hubiera rosal que plantar,
una empresa que acometer!
Que no te atraigan solamente los trabajos fáciles: 
¡Es tan bello hacer lo que otros esquivan! 
Pero no caigas en el error 
de que sólo se hace mérito
con los grandes trabajos; 
hay pequeños servicios
que son buenos servicios: 
adornar una mesa, ordenar unos libros, peinar una niña. 
Aquel es el que critica,
este es el que destruye, sé tú el que sirve. 
El servir no es una faena de seres inferiores.
Dios, que da el fruto y la luz, sirve.
Pudiera llamársele así: El que sirve. 
Y tiene sus ojos fijos en nuestras manos
y nos pregunta cada día: 
¿Serviste hoy? ¿Al árbol?
¿A tu amigo? ¿A tu madre?”


("El placer de servir", poema da chilena Gabriela Mistral)

14 de março de 2019

quem mandou matar Marielle?

(imagem: Suite de Ideias)


hoje, dia 14 de março de 2019, os assassinatos de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completam um ano. dias atrás foram presos dois suspeitos dos assassinatos, mas as perguntas seguem sem respostas: quem mandou matar Marielle? por quê? 

deixo aqui dois dos 50 poemas que integram a antologia Um girassol nos teus cabelos - poemas para Marielle Franco (Quintal Edições, 2018), organizada pelo Mulherio das Letras, com curadoria de Cidinha da Silva, Eliana Mara e Marilia Kubota, orelha assinada por Áurea Carolina e ilustração de capa de Iêda Carvalho:



Turmalina

mar revolto
mar envolto
de luto
e luta
lança ao mar
a morta
a viva mira
a turmalina
à tona
do mar turvo
tumulto
das olas do mar
tragando o tronco da morta
as marolas lavam
lambem a lã na testa
o último toque
à vista da viva
mareja o olho
lacrimeja a pálpebra
ao longe avista
a costa pálida
capitaneia o espírito
de quem viverá
livre um dia
mareada
margeada
por empecilhos
marginalizada
mas maravilhada
alada lá no alto
até que atocaiada
emboscada
executada
transmutada
em tantas mais
marias meninas mulheres
tantas outras elas
apelidadas marielles


Divanize Carbonieri


***

Dentro e além deste poema
A morte não conduz ao silêncio
Mas engendra e fortalece o grito: 
Marielle presente!
Agora, sempre! 


Anna Apolinário

8 de março de 2019

Mafalda, 50 anos de feminismo em tirinhas

Mafalda é uma menina que não se cala nunca,
mas o que a torna uma feminista
é que acima de tudo acredita na equidade.  

por Fernanda Caballero - do EL PAÍS


Mafalda é uma personagem que nasceu há mais de 50 anos, mas as suas reflexões não deixam de ser atuais. Desde sua concepção, Mafalda tem sido reflexiva e combativa em questões como maternidade, guerra e infância. Mafalda: Femenino Singular é a nova compilação das tirinhas de Quino da editora espanhola Lumen, que pretende mostrar o que faz da personagem um ícone da luta das mulheres.

Lola Albornoz, editora da Lumen e responsável pela antologia, explica a Verne que a ideia desta seleção surgiu com a imagem de Mafalda em faixas durante a manifestação feminista de 2018 na Espanha. "No trabalho de Quino há muita reflexão que pode contribuir para o movimento feminista", comenta.

Quino declarou recentemente sua afinidade com a luta feminista: “Sempre acompanhei as causas de direitos humanos em geral e dos direitos das mulheres em particular, a quem desejo sorte em suas reivindicações".

O editor do livro diz que a primeira coisa que se pensa sobre Mafalda é que representa a menina que não para de protestar e desafiar o status quo, mas, para Albornoz, o feminismo nas tirinhas não é tão simples: "Mafalda, sua mãe, e [suas duas amigas] Susanita e Libertad nos ajudam a ver que há muitos tipos de feministas e mulheres. Se Mafalda é o estado reivindicativo do feminismo recente, sua mãe e Susanita são as mulheres no passado. E Libertad vem de uma família em que a mãe trabalha e sua visão é completamente futurista".

Entre cerca de 2.000 tirinhas publicadas por Quino desde 1963, Albornoz diz que não foi difícil encontrar material suficiente para dedicar um volume de 140 páginas às reflexões de Mafalda sobre o papel das mulheres e críticas ao machismo de seu entorno. "Nunca tinha sido posto o foco editorial sobre este tema nas tirinhas. Mas não é só Mafalda se queixando sobre o papel feminino, é a menina que convidando à reflexão", diz Albornoz.



5 de março de 2019

Todos os heróis de Jair Bolsonaro

Augusto Pinochet e Alfredo Stroessner,
heróis de Jair Bolsonaro.
(Foto: Reprodução/YouTube)


por João Filho - The Intercept Brasil


A cerimônia de posse do novo diretor-geral da hidrelétrica de Itaipu tinha tudo para ser uma ocasião corriqueira na agenda de Bolsonaro. O ex-capitão nomeou um general para o cargo e aproveitou o evento para exaltar os ditadores brasileiros que participaram da construção da usina binacional junto com o Paraguai. Afirmou que Castello Branco foi “eleito em 1964″ e saudou Costa e Silva, Médici e Geisel. O último ditador militar, Figueiredo, foi merecedor de um afago especial: “saudoso e querido”. Nada de mais até aí. Prestar homenagens à ditadura militar é um cacoete do nosso presidente.

Mas o que era pra ser um evento trivial acabou ganhando destaque pela exaltação que o presidente brasileiro fez do general Alfredo Stroessner, o ditador sanguinário que comandou o Paraguai com mão de ferro por 35 anos (1954 – 1989), sendo o que mais tempo ficou à frente de um país na história do continente. “É um homem de visão e estadista, que sabia perfeitamente que seu país, Paraguai, só poderia progredir se tivesse energia. Então, aqui, a minha homenagem ao general Alfredo Stroessner”, discursou Bolsonaro para uma plateia de jornalistas, em sua maioria paraguaios.

Desnecessário dizer que o presidente brasileiro mentiu. O legado de Stroessner para o seu país é trágico sob qualquer ponto de vista, inclusive do econômico. Ariel Palacios, correspondente internacional que cobre América Hispânica e Caribe há 23 anos, relembrou no Twitter algumas das atrocidades do ditador que inspira o nosso presidente. Apresento algumas a seguir.

Foi Stroessner o grande responsável por transformar o Paraguai em um país marcado pelo contrabando. Durante seu regime, as Forças Armadas paraguaias eram incentivadas a participar do contrabando dos mais variados produtos — principalmente whisky e carros de luxos roubados — e do tráfico internacional de cocaína. “Ah, mas esse é o preço da paz” era o argumento do ditador paraguaio para justificar o envolvimento das suas tropas com o crime. Os altos lucros mantinham os militares — ou devemos chamar de milicianos? — satisfeitos.

O facínora paraguaio comandou o assassinato de aproximadamente 5 mil civis e, segundo a Comissão Verdade e Justiça do Paraguai, torturou cerca de 18.772 pessoas. Muitos opositores foram torturados e mortos. Alguns foram cortados ao meio por serra elétrica, outros queimados lentamente com maçarico. Talvez seja esse um dos pontos que mais encantam Bolsonaro, que já disse textualmente ser “favorável à tortura”.

Stroessner mantinha um campo de concentração perto da capital Assunção e protegeu criminosos de guerra nazistas como o médico Josef Mengele, o “Anjo da Morte”.

O “estadista de visão” foi também responsável por instalar uma “pedofilocracia” no governo paraguaio. Stroessner e parte da cúpula do regime cometeram uma série de estupro de menores, especialmente de meninas virgens. O ditador ordenava que seus assessores buscassem garotas entre 10 e 15 anos de idade para o seu desfrute. Exigia também que o plantel de meninas fosse renovado regularmente. Investigações do Departamento de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça em Assunção, Stroessner estuprava em média 4 crianças por mês. Uma dessas foi Julia Ozorio, sequestrada da casa dos seus pais por um coronel e mantida como escrava sexual de Stroessner durante três anos. Julia foi abusada também por oficiais, suboficiais e soldados. Ela relatou sua história em um livro chamado “Uma rosa e mil soldados”.

O bolsonarismo, que vê pedófilo até embaixo da cama, deveria explicar a exaltação que o seu grande líder fez de um abusador de menores em série dos mais cruéis que a humanidade já conheceu.

Mas no altar dos heróis de Jair Bolsonaro cabe muita gente. Há uma lista grande de ladrões, assassinos e torturadores que ganharam elogios públicos. O presidente da República tem muitos bandidos de estimação. Como bem lembrou Clóvis Rossi em sua coluna na Folha, “quem admira um torturador admira todos eles”.


PINOCHET

“Pinochet fez o que tinha que ser feito, porque no Chile havia mais de 30 mil cubanos. Então tinha que ser de forma violenta para reconquistar o seu país”, afirmou Bolsonaro no programa de TV de João Kleber. O ex-capitão nunca escondeu a admiração pelo ditador chileno. Quando Pinochet foi preso pelo governo britânico, o então deputado subiu à tribuna da Câmara para defendê-lo. Perguntou o que seria pior para um povo: “o que o general Pinochet talvez tenha feito no passado, exterminando, matando baderneiros, ou a democracia no país, que hoje mata milhões pelo descaso?”

Mas o chileno não ganhou fama internacional de monstro sanguinário por matar “cubanos” e “baderneiros”. Em 2011, um relatório publicado por uma comissão que investiga crimes da ditadura de Pinochet concluiu que 40 mil chilenos foram torturados ou assassinados. Mas para Bolsonaro, “Pinochet devia ter matado mais gente.”

O regime tinha um apreço especial por torturar e estuprar mulheres, sempre com requintes crueldade. O testemunho de uma das vítimas, revelado em 2004, é aterrorizador: “Fiquei grávida depois de um estupro e abortei na prisão. Levei choques elétricos, fiquei pendurada, fui afogada em um tonel de água, queimada com charutos. (…) Fui obrigada a tomar drogas, ameaçada sexualmente com cachorros, ratos vivos foram colocados na minha vagina. Também me obrigaram a ter relações sexuais com meu pai e meu irmão, que estavam detidos, e tive que ver e escutar as torturas deles. (…) Eles me puseram na grelha elétrica, fizeram cortes com uma espada no estômago. Tinha 25 anos. Fiquei detida até 1976. Não tinha nenhum processo.”

Pinochet foi autor do primeiro atentado terrorista internacional com bomba em Washington, capital dos EUA. Logo depois de derrubar o presidente eleito Salvador Allende com um golpe militar, uma das suas primeiras ações foi ordenar o assassinato de Orlando Letelier, ex-chanceler chileno, que estava exilado em Washington. Seu carro carregava uma bomba e explodiu a menos de 20 quarteirões da Casa Branca. O que diria o mais notável fã brasileiro de Pinochet sobre isso? “Fez o que tinha que ser feito?”

Ano passado, depois de investigação que durou 14 anos, a justiça chilena ordenou que a família de Pinochet devolvesse R$ 19,6 milhões aos cofres públicos. Boa parte do dinheiro roubado durante a ditadura estava escondido em 125 contas secretas nos EUA.

Em 2006, quando já se conhecia todas as atrocidades do chileno, o então deputado Jair Bolsonaro enviou telegrama em solidariedade ao neto do ditador, que havia sido afastado do Exército por fazer um pronunciamento no sepultamento do avô sem autorização.

A paixão do presidente brasileiro por Pinochet é grande. Quando o governo britânico prendeu o ditador, Jair Bolsonaro considerou uma injustiça e chegou a enviar um fax para Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, pedindo a imediata libertação do ladrão, torturador, terrorista e assassino chileno.


FUJIMORI

Em 1991, Fujimori aplicou um autogolpe no Peru, fechando o Congresso e a Suprema Corte do país. Quatro anos depois, o ditador peruano veio ao Brasil e não foi recebido pelas principais autoridades brasileiras. José Sarney, presidente do Senado, Luís Eduardo Magalhães, presidente da Câmara, e Sepúlveda Pertence, presidente do STF, se recusaram a encontrá-lo como forma de protesto. Jair Bolsonaro, deputado do baixo clero, lamentou a decisão dos brasileiros e afirmou que Fujimori era um “homem digno”, que fazia um “excelente governo”.

Fujimori governou o Peru por dez anos (1990 – 2000) e comandou uma ditadura sanguinária. Perseguiu, sequestrou, torturou e matou opositores. Em entrevista para o New York Times em 1993, Bolsonaro disse que tem “simpatia por Fujimori” e que a saída para o Brasil seria a “fujimorização”.

A face mais cruel da “fujimorização” no Peru talvez tenha sido o programa de esterilização em massa. Em 2002, a investigação de uma comissão do Congresso peruano revelou que o governo obrigou 314 mil mulheres, a maioria indígenas, a fazerem laqueaduras.

A versão oficial era a de que o programa de esterilização era voluntário. Só as mulheres que quisessem receberiam a cirurgia do governo. Jair Bolsonaro, claro, comprou imediatamente a versão da ditadura peruana e elogiou o programa em declaração na Câmara: “Pela sua coragem, quero agora louvar o excelentíssimo Sr. Presidente do Peru, Alberto Fujimori, que implantou em seu país, como forma de conter a explosão demográfica, a esterilização voluntária”. No mesmo discurso, o então deputado, vejam só, culpou a Igreja Católica — “uma das grandes responsáveis pela miséria que grassa em nosso meio” — pelo aumento desordenado da população.

Em 2009, o ídolo peruano de Bolsonaro foi condenado a 25 anos de cadeia por corrupção e por comandar dois massacres contra civis, usados como justificativa para combater o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso. Fujimori se utilizava de esquadrões paramilitares — você pode chamar de milícias se quiser — para executar homicídios e sequestros. Esse é o homem que Bolsonaro considerava “digno” e que fez um “excelente governo”.


CORONEL BRILHANTE USTRA

O torturador Ustra talvez seja uma das grandes referências políticas do presidente da República. Não é à toa que o livro de memórias do coronel seja sua leitura de cabeceira. Ustra foi o líder das torturas durante o regime militar e o único torturador condenado pela Justiça. No período em que ficou à frente do DOI-CODI, órgão de repressão onde ficavam os presos políticos, 50 pessoas que estavam sob a custódia do Estado foram assassinadas.

Ele se destacava pelo sadismo e pela crueldade. Espancou grávida e torturou uma mãe na frente dos seus filhos. O vereador Gilberto Natalini (PV-SP) tinha 19 anos quando foi torturado pelo herói de Bolsonaro: “Enquanto me dava choques, Ustra me batia com cipó e gritava”.

A ex-presidente Dilma Rousseff também foi torturada por Ustra quando tinha 19 anos. Com muito sadismo, Bolsonaro o homenageou no famoso voto a favor do impeachment da ex-presidente: “o pavor de Dilma Rousseff”.


CORONEL LÍCIO AUGUSTO RIBEIRO MACIEL

Em 2012, o Ministério Público Federal moveu ação civil pública contra o coronel da reserva por prisão ilícita, tortura e homicídio de quatro militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo), que combatia a ditadura militar no Tocantins.

Lício se orgulha de ter comandado o fim da guerrilha do Araguaia e prendido o José Genoíno, seu principal líder, que afirma ter sido torturado durante meses após a prisão.

Em 2005, quando Genoíno foi prestar depoimento na CPI do Mensalão, Bolsonaro mais uma vez demonstrou o sadismo típico dos seus heróis: levou Lício no plenário para acompanhar o depoimento. Políticos de todos os partidos se revoltaram com a presença do coronel, mas Bolsonaro não se intimidou: “Ele é meu convidado, eu paguei a passagem de avião dele. É um direito meu.”


GRUPOS DE EXTERMÍNIO E MILÍCIAS

Em 2003, grupos de extermínio aterrorizavam a Bahia. Comandados em sua maioria por policiais e ex-policiais civis e militares, os grupos assassinaram centenas de jovens negros de periferia por supostamente terem cometidos crimes. Bolsonaro subiu ao plenário da Câmara e fez uma defesa apaixonada dos criminosos:

“Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um Parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio, porque no meu estado só as pessoas inocentes são dizimadas. Na Bahia, pelas informações que tenho — lógico que são grupos ilegais —, a marginalidade tem decrescido. Meus parabéns”!

Em 2008, na CPI das Milícias, que pediu o indiciamento de 266 pessoas suspeitas de ligação com grupos paramilitares no Rio, Bolsonaro novamente saiu em defesa da bandidagem:

“Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes. Existe miliciano que não tem nada a ver com ‘gatonet’, com venda de gás. Como ele ganha R$ 850 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade.”

Torturadores, homicidas, sequestradores, estupradores, corruptos e pedófilos. Os heróis do presidente da República não morreram de overdose, mas o inspiraram usando o estado para cometer os crimes mais odiosos, sempre em nome do bem.


3 de março de 2019

o sol se equilibrando sobre o fio de energia elétrica

(da janela do meu quarto)


"Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais,
é só fazer outras maiores perguntas."

João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas 

26 de fevereiro de 2019

no NotaTerapia

uma matéria linda sobre mim (com alguns dos meus poemas) foi publicada no NotaTerapia, que é um espaço da internet com ótimo conteúdo para quem gosta de arte, literatura e poesia (para os que ainda não conhecem o site, deixo aqui a sugestão de visita, vale muito a pena, há sempre matérias bem interessantes sendo compartilhadas por lá!). eis o link: 


24 de fevereiro de 2019

Farra do Boi

(imagem: PMF)

eu soube, e fiquei feliz com a notícia, que a prefeitura de Florianópolis (lugar lindo que eu costumava visitar muitas vezes com minha família durante a minha infância e onde muitos anos depois morei por algum tempo) lançou uma série de ações para conscientizar a população sobre a crueldade da farra do boi. além de intervenções artísticas em alguns pontos da cidade, exposição de faixas, inclusive uma na entrada da ilha, a cidade também planeja ações de repressão para quem insiste em cometer o crime da farra do boi. 

para quem não sabe do que se trata, uma breve explicação: a farra do boi é uma prática ilegal que consiste em soltar o animal em algum local ermo e fazê-lo perseguir os participantes da prática, que agridem o boi com objetos, algo que só acaba quando ele está exausto e machucado a ponto de não conseguir mais nem levantar (os bois geralmente acabam sendo sacrificados). a prática foi proibida há mais de duas décadas pelo Supremo Tribunal Federal, mas nem a lei conseguiu acabar de vez com essa tradição "cultural" que começou com os açorianos que desembarcaram em Santa Catarina no século XVIII. 

(imagem: BBC Brasil - divulgação/ Ecosul) 

"Herança do catolicismo antigo, o boi é visto na Farra como a representação de Judas, o traidor de Cristo. A simbologia religiosa é a carta branca para que os farristas cometam sem culpa quaisquer atrocidades, mesmo que a Igreja Católica se oponha duramente contra a prática, que alega ser pagã.

Há casos de bois que morreram de susto. Mas poucos têm essa sorte. Esses animais são perseguidos por horas, até a exaustão, são espancados com paus, espetos, têm olhos furados, rabos e orelhas arrancados, alguns quebram os ossos no desespero da fuga. Outros vão em direção ao mar e se afogam. A diversão sangrenta persiste há quase 300 anos no Sul do Brasil." (do BBC Brasil)

essa "diversão sangrenta" é tão estúpida e cruel quanto as touradas, por exemplo, outra tradição que algumas cidades de países latino-americanos mantêm há muito tempo por influência europeia. embora eu prefira evitar ao máximo ver esse tipo de imagens, quando acontece de eu acabar vendo eu sempre torço pelos touros, torço mesmo, pois se ainda há pessoas que acham que está tudo bem em maltratar e matar um animal dessa maneira apenas para a diversão de gente insensível (que provavelmente se julga superior aos outros animais), então eu quero mais é que se fodam mesmo, esses toureiros e quaisquer outras pessoas que participam de todas essas práticas sangrentas que infelizmente ainda são tão comuns em vários lugares do mundo. 

19 de fevereiro de 2019

Revista InComunidade

alguns dos meus poemas foram publicados na edição de fevereiro da revista portuguesa InComunidade. para quem quiser ler a edição (número 77), eis aqui o link:


Revista InComunidade

12 de fevereiro de 2019

Glauco Mattoso


morei durante algum tempo em São Paulo e minha chegada na cidade coincidiu com o período em que uma editora de livros estava se organizando para inaugurar um centro cultural onde haveria uma livraria e também um grande espaço em que funcionaria uma galeria de arte. fui contratado para trabalhar nesse local, onde acabei ficando por um bom tempo. além de lançamentos de livros em um espaço da própria livraria, havia, também, uma grande sala onde aconteciam palestras e saraus literários. eu participava, quando era possível, de alguns desses encontros. tive a oportunidade, então, de conhecer vários escritores, poetas e artistas plásticos de muitas partes do Brasil. 

em um desses encontros, que geralmente aconteciam aos sábados, teríamos a participação do escritor e poeta Glauco Mattoso. eu não sabia muito sobre ele até então, sabia, por exemplo, da música "Língua", em que ele foi citado por Caetano Veloso, e, a partir disso, como uma porta de entrada, eu fui ler, muitos anos atrás, alguns dos sonetos do Glauco, que nunca foi o tipo de poema que eu costumava ler, pois sempre preferi o verso livre. eu sabia, também, apenas de maneira mais superficial sobre a vida do escritor e poeta, mas que já era suficiente para me fazer participar daquele encontro literário com certa curiosidade. eu supunha, por causa da ideia que fazia sobre ele, que veria e ouviria uma pessoa que seria talvez apenas sarcástica falando, talvez meio chocante para alguns (não para mim), mas o que aconteceu foi que me surpreendi com o fato de ele ter parecido ser, e ser, na verdade, não apenas muito inteligente, como eu já imaginava, mas também uma pessoa com um modo de se expressar até mesmo, em muitos momentos, elegante, delicado, inclusive.

no final desse encontro, enquanto as pessoas conversavam na livraria e tomavam café, etc., o Glauco e eu conversamos um pouco e acabamos trocando nossos endereços de e-mail. algum tempo depois disso, semanas depois, escrevi para ele, que não demorou para me responder e ainda me surpreendeu me pedindo o endereço da minha casa porque queria me enviar de presente um dos muitos livros que ele já havia publicado. a partir disso mantivemos contato e ele começou a me enviar através do correio alguns dos seus livros, mesmo um longo tempo depois, quando eu já havia ido embora de São Paulo e estava morando no meu estado. 

eu sempre pensei, e com o tempo senti que pude ir confirmando isso, que os escritores e poetas (não todos, é claro, mas quase isso) são mais interessantes escrevendo do que falando. tenho essa mesma impressão em relação aos artistas, cantores, atores, pintores, o que for, que também me parecem muitas vezes mais interessantes através dos seus trabalhos do que fora deles. um cantor ou cantora, por exemplo, se me parecer interessante em cima de um palco, mas fora dele, na vida, não, ou se de repente for alguém que dê declarações estranhas, que diga coisas que eu considere estúpidas, por exemplo, instintivamente eu perco muito (e totalmente, em alguns casos) do interesse pela arte que a pessoa já tenha produzido ou possa ainda produzir. sim, para mim não há como desconectar a vida da obra de quem quer seja.

mas há os casos, as exceções, em que a pessoa me desperta tanto interesse através do que ela representa, vive e diz para além do que apresenta, compartilha como sua arte ou seus escritos, seja o que for, que eu acabo tendo ainda mais interesse por essa arte ou por esses escritos, e o Glauco é, para mim, um desses casos. além disso, é uma pessoa muito generosa, e como não gostar de gente generosa? fácil de não gostar, na minha opinião, é de gente intocável que, simbolicamente, fica no alto de uma torre como se olhasse os outros de cima, muitas vezes podendo até mesmo ser talentosa, mas agindo como se fosse inacessível, sem dialogar com seu público para além de sua arte ou de seus livros. há tanta gente por aí que mesmo através de blogues, por exemplo, parece preferir escrever como se estivesse falando somente para as paredes, o que me faz pensar no porquê da necessidade de alguém manter um blog se é para não haver algum diálogo com leitores, afinal, quem escreve quer ser lido, e quem quer ser lido espera por algum tipo qualquer de retorno, não é mesmo? Glauco representa, para mim, muito do que eu admiro em alguém que dedica sua vida para a palavra escrita, seja lá de que forma ou quanto for: além de usar bem as palavras, é, antes de tudo, uma pessoa de mente aberta, inspiradora, de pensamentos que não ficaram cristalizados pelo tempo. 

*

na orelha do livro Poética na Política (Geração Editorial, 2004), o editor Luiz Fernando Emediato escreveu sobre Glauco Mattoso:

"Glauco Mattoso é um caso único na literatura brasileira. Esse estranho e prolífico poeta incendiário - o mais maldito dos poetas brasileiros - era apenas um daqueles que, nos anos 70, irreverente e jovem, escandalizava os burgueses com seus versos furibundos e anti-higiênicos, impressos em qualquer papel e vendido nas ruas de mão em mão. 

Foi-se a poesia marginal e alguns poetas vestiram paletó e gravata para cuidar de suas vidas na Bolsa de Valores. Outros perderam o encanto e gosto pela poesia. Houve até quem se matasse de desgosto ou de desencanto pela própria vida, sem dúvida um direito. Glauco, que tinha motivos para se desgostar - como Borges, foi ficando progressivamente cego, coisa terrível para quem adora ler -, continuou poetando. E, que coisa estranha: quanto mais cego, mais ele parece enxergar o que se deve criticar com seus versos cáusticos. 

O soneto, forma clássica eternizada por Camões e Shakespeare, não é mais utilizado pelos poetas modernos - mas é com ele que Glauco Mattoso ataca (e como ataca!) a trágica mediocridade da política brasileira, sem deixar pedra sobre pedra. Neste livro, que contém - numerados - 100 sonetos selecionados de sua impressionante produção, Glauco retoma um de seus temas prediletos. 

Um crítico, Leo Gilson Ribeiro, já escreveu que Glauco Mattoso é um misto de Baudelaire e Rabelais, com a elegância de Camões e Milton. É verdade. Seus sonetos primorosamente rimados e ritmados revelam uma técnica perfeita. O que choca neles é mesmo o tema: a corrupção, a podridão, o chulé, o mau-hálito, os maus costumes daqueles que infelizmente ainda comandam a vida dos cidadãos que neles... votam! 

Na linha de Bocage e Gregório de Matos - mas muito mais divertido! -, Glauco, como já se escreveu, continua pondo e dedo em todas as feridas e pisando em todos os calos. A leitura é uma delícia. E, como já disse o próprio Glauco uma vez, de duas, uma: ou o leitor se desintoxica ou se envenena de vez. Bom proveito!"

*

alguns dos sonetos do livro Poética na Política:


Sádico

Legal é ver político morrendo
de câncer, quer na próstata ou no reto, 
e, pra que meu prazer seja completo, 
tenha um tumor na língua como adendo.

Se for ministro, então, não me arrependo
de ser-lhe muito mais que um desafeto, 
rogar-lhe morte igual à que um inseto
na mão da molecada vai sofrendo. 

Mas o melhor de tudo é o presidente
ser desmoralizado na risada
por quem faz poesia como a gente. 

Ele nos fode a cada canetada, 
mas eu, usando só o poder da mente, 
espeto-lhe o loló com minha espada. 

*

Achincalhado

Não querem que avacalhe? De que jeito,
se são os próprios caras que na imagem
da casa cagam, como putas agem
e só papel ridículo têm feito? 

Além de legislar sempre em proveito
do bolso e de outros próprios, sacanagem
maior vem da propina e da vantagem
por fora, do indevido e do suspeito! 

Ali, tem "comissão" duplo sentido,
de grupo que investiga e de caixinha,
mas só pejorativo ele tem sido:

Suborno, em si, se é prática mesquinha,
pior ainda é quando este bandido
inquire aquele e arquiva a "picuinha"! 

*

Destrambelhado

Perdendo a paciência, ultimamente, 
me vejo com políticos! Parece
até que antigamente a gente esquece
de tanta falcatrua e já nem sente!

Mas hoje há mais razão pra que se atente
aos métodos daninhos de quem tece
a teia financeira, que carece
duma investigação profunda e urgente. 

Sabendo que a devassa nunca sai
e vendo que o dinheiro vai sumindo,
acabo expondo a raiva que me trai! 

Se pego um desses caras, vai ser lindo
o jeito com que o mato! Ó Deus, me dai
a chance, que o rancor conservo, infindo!

*

Dialético

A síntese do avanço consciente 
é aquele velho método sagaz
que preconiza dar um passo atrás
a fim de dar dois passos para a frente.

A tese se apresenta incoerente,
mas a contradição já se desfaz 
em face da estratégia, que é de paz,
embora lembre a marcha combatente. 

Antítese do avanço é o retrocesso, 
ao obscurantismo associado, 
e nesse ponto exato me interesso.

Questão de ordem faço deste dado:
tão logo fiquei cego, o passo meço;
tropeço, mas não caio: adianto o lado. 

*

Antológico

As frases memoráveis da República
deviam ter, na pedra ou voz gravada,
registro, qual legenda avacalhada
num filme de comédia ou cena lúbrica.

"Prometo que agirei na vida pública
da mesma forma que ajo na privada!";
ou: "Fi-lo porque qui-lo", tão surrada;
ou: "Não me deixem só!", suprema súplica.

Também vou proferir, eu que não minto, 
a pérola imortal de quem adora
mandatos, completado o quarto ou quinto:

"Da vida partidária saio agora.
Já fiz o que devia, e alívio sinto.
Caguei, limpei a bunda,e vou-me embora!"

*

Iluminista

Voltaire disse que nunca concordava
com nada que você queira dizer,
mas que defenderia até morrer
o seu direito ao uso da palavra. 

Enquanto a Inquisição fere, escalavra
e queima vivo quem ousa descrer, 
defende o bom sacrilégio o prazer
do livre-pensador, labuta brava.

Irônico destino esse que pega
safados pecadores, sobre os quais
recai missão igual à de quem prega!

Feliz fatalidade essa que faz
duma lúcida dúvida a fé cega
de que as opiniões são desiguais!

*

Hediondo

Estupros, latrocínios e sequestros, 
o horror do genocídio racial
merecem punição especial: 
castigos, não sinistros, porém destros.

O riso é o mais sarcástico dos sestros
que crispam o desenho facial.
Dos crimes ri o Mentor, Senhor de Tal, 
o Réu, maior de todos os maestros.

Na certa o Onipotente é quem responde
por tudo que acontece pra quem erra,
e atrás da impunidade Ele se esconde.

Levá-lo a Nuremberg, após a guerra!
Puni-lo com prisão perpétua! E onde?
No inferno que pra nós criou: a Terra!

*

Civil

Aqui, de ditadura em ditadura,
democracia cai nos intervalos. 
Cavalaria é própria de cavalos.
Um homem pode ser cavalgadura.

República com fardas se inaugura.
As botas fazem bolhas, causam calos.
Moeda fraca escorre pelos ralos.
Fuzil, neste país, ninguém segura.

Um dia, a economia desmorona.
Golpismo, Estado Novo, Redentora,
acaba tudo em pizza, em puzza, em zona.

Passa de mão em mão, como se fora
a troca duma guarda sem dragona,
sem honra ou tradição, só sucessora. 



(na imagem, oito livros de Glauco Mattoso sobre a mesa: 
- Tripé do Tripúdio e outros contos hediondos - São Paulo: Tordesilhas, 2011. 
- Contos Hediondos - São Paulo: Demônio Negro, Annablume, 2008. 
- A Planta da Donzela - Lamparina editora, 2005. 
- O cancioneiro carioca e brasileiro - São Paulo: Annablume, 2008. 
- A letra da lei - São Paulo: Annablume, 2008.
- Faca cega e outras pelejas sujas - São Paulo: Annablume, 2007. 
- A aranha punk - São Paulo: Annablume, 2007. 
- Poética na Política - São Paulo: Geração Editorial, 2004.)

7 de fevereiro de 2019

Hilda Hilst: "Cronista: filho de Cronos com Ishtar"


Uma das coisas que eu mais admiro em alguém é o humor. Nada a ver com boçalidade. Alguns me pedem crônicas sérias. Gente... o que fui de séria nos meus textos nestes quarenta e três anos de escritora! Tão séria que o meu querido amigo, jornalista e crítico, José Castello, escreveu que eu provoco a fuga insana, isto é, o cara começa a me ler e sai correndo pro funil do infinito. Tão séria que provoco o pânico. E nestas crônicas o que eu menos desejo é provocar o pânico... Já pensaram, a cada segunda-feira, os leitores atirando o jornal pelos ares e ensandecendo? Já pensaram o que é isso de falar a sério e dizer por exemplo: que é isso, meu chapa, nós vamos todos morrer e apodrecer (ainda bem que não é apodrecer e depois morrer, o lá de cima foi bonzinho nesse pedaço), tu não é ninguém, meu chapa, tudo é transitório, a casa que cê pensa que é sua vai ser logo mais de alguém, tu é hóspede do tempo, negão, já pensou como vai ser o não-ser? Tá chateado por quê? Tu também vai envelhecer, ficar gling-glang e morrer... (há belas exceções, como o Bertrand Russell fazendo comício aos noventa, mas tu não é Bertrand Russell). Até o Sartre, gente, inteligentíssimo, ficou na velhice se mijando nas calças e fazendo papelão... Se todo mundo pensasse seriamente no absurdo que é tudo isso de ser feito de carne, mas também olhar as estrelas, de ter um rosto, mas também ter aquele buraco fétido, se todo mundo tivesse o hábito de pensar, haveria mais piedade, mais solidariedade, mais compaixão e amor. 

Mas quem é que vocês conhecem que pensa? As mães que nos colocaram no planeta pensaram? Claro que não. Na hora de revirá os óinho ninguém pensa. Só seria justificável parir se o teu pimpolho fosse imortal e vivesse à mão direita Daquele. Mas o teu pimpolho também vai morrer e apodrecer não sem antes passar por todos os horrores do planeta. Tá jogando fora o jornal, benzinho? Então vamos brincar de inventar uma nova semântica: 

Semântica - Antologia do sêmen
Solipsismo - Psiquismo solitário
Hipérbole - Bola grande
Xenofobia - Fobia de Xenos
Ligadura - Liga das Senhoras Católicas
Ânulo - Filete colocado por sob o bocel da cornija do capitel dórico
Bocel - Corruptela de boçal
Ânus - Pronúncia errada de anus (aves da família dos cuculídeos)
Ku - Lua em finlandês
Cou (Pronuncia-se cu) - Pescoço em francês
Hipocampo - Campo de hipismo
Proclamas - Alvoroço de amas
Misantropia - Entropia do Méson Mi
Democracia - Poder do demo
Paradoxo - Oxiúros em estado de repouso (parado)
República - Ré muito manjada

Bom dia, leitor! Tá contente?

Contente - Filho do ente do Heidegger (informe-se) com Cohn-Bendit (informe-se). 


(domingo, 13 de setembro de 1993)


Hilda Hilst 
em Cascos & carícias & outras crônicas 
São Paulo : Globo, 2007. 


(Cascos & carícias & e outras crônicas é uma seleção de crônicas que Hilda Hilst produziu para o jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995)

4 de fevereiro de 2019

Gazeta de Poesia Inédita

meu poema litosfera foi publicado na GAZETA DE POESIA INÉDITA, do poeta português José Pascoal (autor dos livros Sob Este Título, Antídotos e Excertos Incertos, todos publicados pela Editorial Minerva, de Lisboa). aos que ainda não conhecem a GAZETA e queiram conhecer, eis o endereço:


gazetadepoesiainedita.blogs.sapo.pt

29 de janeiro de 2019

alcoba azul

La noche irá sin prisa
de nostalgia
Habrá de ser un tango
nuestra herida
Un acordeón sangriento
nuestras almas
Seremos esta noche
todo el día

Vuelve a mí
Ámame sin luz
En nuestra alcoba azul
Donde no hubo sol
para nosotros

Ciégame
Mata mi corazón
En nuestra alcoba azul
Mi Amor


voz: Lila Downs
letra: poeta mexicano Hernán Bravo Varela
música: Elliot Goldenthal



27 de janeiro de 2019

intento


intento da língua
também é caber
dentro da boca
em que saliva

língua solta
só se for quieta
dentro da boca
que é outra

língua na outra
é recíproco
cabe no que diz
em silêncio

algumas línguas
preferem não
a minha língua
prefere assim:

calada no céu
de uma boca
que joga saliva

dentro de mim. 



(imagem: Schiele)

26 de janeiro de 2019