7 de dezembro de 2019

do que (para mim) vale mais

montanhas de dinheiro, marcas de roupas caras, carrão, o tangível no aumentativo, arroto de caviar, veuve de dom pérignon, alarde de diplomas, nutrição de flor de umbigo em rede social, barrigas chapadas em egos inflados, desfile de riqueza material, qualquer coisa com a qual o capiroto da ganância possa querer nos seduzir em troca das nossas almas, etc. e tal, nada disso me impressiona. impressionante mesmo, para mim, é a Floresta Amazônica, o sol, a lua, é quem mostra também as próprias sombras, quem tem consciência social, a coragem de demonstrar afeto, ser maior do que as invejas e exaltar qualidades de alguém, a existência de anéis em Saturno, a luz da lua sobre o mar, aurora boreal, qualquer tipo de pedra, qualquer rocha de Torres, a Praia da Guarita, da Cal, Machu Picchu no topo de uma montanha, o chão e o céu do Deserto de Atacama, do Saara, do Salar de Uyuni, o lago Titicaca, a branca imensidão da Antártida, da Groenlândia, a chuva, um raio, o voo dos pássaros, o olho de uma coruja, de um lobo, de um peixe, a sobriedade elegante dos gatos, a força e o instinto de coletividade das formigas, das abelhas, a pureza do meu cachorro, dos outros cachorros, qualquer bicho, pois os bichos não precisam de filosofia, banho de loja, sabem a que vieram e não se perguntam de onde e por quê, afinal, como escreveu José Saramago, "o instinto serve melhor aos bichos do que a razão serve aos seres humanos." impressionante, para mim, é quem descobre universos nas miudezas, no ínfimo e no grandioso da natureza, é quem enxerga além do que é palpável.

(curtindo o sol) 

29 de novembro de 2019

aos garis e margaridas

se os poetas
parassem de escrever,
nada de mais aconteceria
(poesia: com a qual
ou sem a qual,
o mundo
não continuaria
tal e qual?),
telas e papéis ainda
seriam fabricados
para morrerem
em branco
ou iluminados
enquanto o sol
para todos nasceria.

se os músicos
parassem de compor,
nada de mais aconteceria
(ainda que a música
possa ser para a alma
o que o alimento
é para o corpo),
as rádios continuariam
suas programações
com músicas
das décadas passadas
e os ouvidos passariam
a ouvir mais (quem sabe?)
uma voz que só pode
ser ouvida através do silêncio.

se os pintores
parassem de pintar,
nada de mais aconteceria
(nas cores que a gente pinta,
ainda a vida),
o céu continuaria
às vezes indeciso
entre o laranja e o violeta
às seis horas da tarde
e ainda haveria terra
em alguns tons de marrom
como os da mistura de tintas
das três cores primárias.

mas se os garis
e as margaridas
(imprescindíveis
a escapar das retinas)
parassem de varrer as ruas,
estaríamos todos sujos.

3 de novembro de 2019

cá da Terra



se apenas na parte
visível do Universo
existem mais
de cem bilhões
de galáxias
e em cada
galáxia
uma
média
de cem
bilhões
de estrelas,
estupidez
é ater-se
à língua
comprida
e bifurcada
de quem usa
telas e janelas
somente para
observar
a vida
alheia.



(imagem: foto de Carlos Fairnbairn)

30 de setembro de 2019

dos moralismos e hipocrisias


mais uma criança foi morta por "bala perdida" (dessas balas perdidas que geralmente acabam encontrando como alvos os corpos de negros e pobres) no Rio de Janeiro. somente neste ano, nos meses de governo Witzel, 1.249 pessoas morreram em favelas, 44 policiais morreram e 16 crianças foram baleadas - 5 dessas foram mortas. não é simplesmente, como querem fazer parecer alguns, efeito colateral do combate ao crime, é uma carnificina, uma política de segurança pública (de extermínio, na verdade) que autoriza a polícia a atirar "na cabecinha", como disse o próprio governador do Rio de Janeiro, algo que me faz lembrar de Bolsonaro dizendo anos atrás, em uma entrevista na televisão, que era necessário "fazer uma guerra civil" no país e "matar uns 30 mil", mesmo que morressem alguns inocentes, "tudo bem", segundo ele.

pouco tempo atrás, Bolsonaro elogiou Stroessner, o PEDÓFILO e torturador que foi presidente do Paraguai. Crivella, o prefeito do Rio de Janeiro, recentemente fez alarde querendo censurar um livro que seria vendido na Bienal do Rio pelo fato de haver nele a imagem de um beijo entre dois personagens masculinos. A ministra Damares já disse (e esse é apenas um dos tantos absurdos saídos de sua mente lunática) que na Holanda os pais masturbam seus filhos bebês para que eles se tornem adultos sexualmente saudáveis. são essas as pessoas, e tantas e tantas outras (governantes, pastores, etc.), que, obcecadas pela sexualidade alheia, constantemente pregam "a moral dos bons costumes", como se estivessem muito preocupadas com a educação das crianças, mas que pouco ou nada dizem quando algumas dessas crianças são assassinadas.

em seu discurso mentiroso na ONU, Bolsonaro disse que "a 'ideologia' invadiu nossos lares e tenta destruir a inocência de nossas crianças". um discurso ideológico (de uma voz nada conciliadora) contra "a ideologia", ou seja, hipócrita, moralista. Bolsonaro, Damares, Crivella, e esses outros pastores que apoiam o atual governo, fizeram alguma crítica sobre o fato, por exemplo, de o apresentador, dono da emissora de televisão SBT, Silvio Santos (aliado de Bolsonaro), exibir em seu programa, no domingo em rede nacional, crianças vestidas com maiô, como se fossem adultas, para que escolhessem aquela que tivesse, segundo o que o próprio Silvio Santos disse, "as pernas mais bonitas, o corpo"? obviamente: não.

em seu discurso mentiroso na ONU, Bolsonaro disse, também, que "o ambientalismo radical" e o "indigenismo ultrapassado" representam "o atraso" e que seu governo tem "tolerância zero para criminalidade, incluindo crimes ambientais". ele desmontou toda a estrutura de fiscalização dos órgãos governamentais de defesa do meio ambiente, mas na ONU, onde estaria falando para o mundo inteiro, ele diz que tem "tolerância zero com crimes ambientais", ou seja, mente descaradamente. e quem é Bolsonaro, um homem que sempre destilou diversos preconceitos, um dos políticos mais retrógrados do mundo, que discursa "como se estivesse ainda na Guerra Fria" (como bem disse um professor da UERJ), para falar sobre atraso?

alguns políticos, pastores e outras pessoas que cometem absurdos (o deputado e pastor Marco Feliciano, aquele que já foi gravado pedindo o cartão de crédito de uma pessoa na igreja, recentemente teve seu tratamento dentário, no valor de 157 MIL REAIS, pago pela Câmara dos Deputados, ou seja, pelo povo, Bolsonaro dizendo que usava o dinheiro que recebia do auxílio-moradia para "comer gente", Damares e Witzel dizendo que possuem diplomas que, na verdade, eles não têm, etc., etc., etc.) são as pessoas que, cheias de imoralidades em suas vidas mais sujas que pau de galinheiro e ao mesmo tempo com discurso moralista e hipócrita, querem censurar a arte no país, exposições, filmes, livros, etc.

governos autoritários não querem cidadãos que façam questionamentos através da arte, do cinema, do teatro, da música, da literatura, da filosofia, da poesia, querem cidadãos que apenas digam "amém", que não se oponham sobre nada. Fernanda Montenegro, por exemplo, uma das grandes atrizes do Brasil e do mundo, recentemente foi alvo do ódio cego de ignorantes pelo fato de se posicionar politicamente. há uma frase que é atribuída ao escritor Caio Fernando Abreu, que eu não sei se realmente é dele, mas que eu gosto muito, que diz o seguinte: "é melhor ser rejeitado por ser sincero do que ser aceito sendo hipócrita". há uma outra frase, que eu não sei a autoria, que diz o seguinte: "se 'todo mundo' gosta de você é porque você não está se posicionando o suficiente".

há pessoas (moralistas e hipócritas) que às vezes se dizem "chocadas" com algumas representações artísticas, com algumas imagens em livros e em espaços na internet ou com o uso de algumas palavras tidas como "palavrões" ("palavrão mesmo é condomínio, pedágio, fome", como certa vez disse Dercy Gonçalves), mas que não se dizem ou não se mostram chocadas quando, por exemplo, um presidente de um país exalta a tortura, torturadores, pedófilos, assassinos, quando políticos grosseiros e extremamente ignorantes incitam a intolerância e a violência entre as pessoas.

há pessoas (moralistas e hipócritas) que pregam a "paz" (e agindo não muito diferente desses com armas nas mãos e que erram o alvo matando pessoas inocentes), mas estão cheias de ira buscando alvos errados para serem julgados por elas - são pessoas que se sentam diante de um computador, ou com um telefone nas mãos, e armadas com suas línguas e dedos miram seus julgamentos contra os que ousam criticar as verdadeiras barbáries mesmo sabendo que por isso serão alvos dos que preferem compactuar com os horrores do mundo.

há pessoas (moralistas e hipócritas), geralmente covardes que nem sequer mostram a cara (esses tantos que geralmente não dão a cara a tapas ao dizerem o que pensam, protegidos atrás de imagens que não são de si mesmos), que em vez de usarem suas palavras contra os canalhas e perigosos que estão no poder (des)governando cidades, estados e países e desgraçando a vida de tantas pessoas e bichos, preferem usar suas palavras contra os que usam suas palavras contra a ignorância nociva, os preconceitos, o retrocesso, a estupidez humana...

há pessoas (moralistas e hipócritas) que provavelmente se sentem maiores quando tentam, no desejo de buscar atenção com seus julgamentos (muitas vezes evidentes demonstrações de inveja), diminuir outras pessoas ("quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo", como escreveu Freud).

há pessoas (moralistas e hipócritas), geralmente caretas de ideias antiquadas, ultrapassadas, que querem da arte um (falso) puritanismo, que querem dos livros somente palavras assépticas, que rejeitam o fato de que a arte, a literatura e a poesia podem ser provocativas e servem, também, para que possamos expandir a mente e, assim, fazer caber nela mais da realidade do mundo. mas há quem prefira, antes de tudo cerceando a si mesmo, ver em uma rosa apenas as pétalas e negar a existência dos acúleos em seu caule.

14 de setembro de 2019

algumas páginas: Manoel de Barros


















Manoel de Barros
Poesia completa - São Paulo: LeYa, 2013.

7 de setembro de 2019

12 de agosto de 2019

¿qué he sacado con quererte?

("Contra la guerra", tela bordada, 1962 - Violeta Parra)


com nome de uma cor e de uma flor, a compositora, cantora e artista plástica chilena Violeta Parra (1917 - 1967) foi, é, um ícone da cultura latino-americana. compositora de pérolas musicais como Gracias a la Vida (interpretada por cantoras como Elis Regina, Joan Baez e Mercedes Sosa, que gravou, em 1971, um álbum somente com composições de Violeta intitulado Homenaje a Violeta Parra) e Volver a los 17 (mais conhecida no Brasil também pelo dueto de Mercedes Sosa com Milton Nascimento), também foi compiladora de músicas folclóricas. por seu talento multifacetado, pelas canções que uniam o protesto (que se transformaram em hinos à liberdade) e o mais genuíno lirismo, Violeta é uma das artistas que mais admiro (inclusive a imagem de fundo deste blog é uma tela bordada por Violeta chamada Contra la guerra, de 1962). dentre tantos vídeos que eu poderia compartilhar de diversos artistas interpretando músicas de Violeta Parra ou dela própria, deixo aqui uma gravação arrebatadora da música ¿Qué he sacado con quererte? (que tenho visto e ouvido muito) interpretada pela mexicana Natalia Lafourcade, cantora da nova geração da música latino-americana:


¿Qué he sacado con la luna, ay, ay, ay, 
que los dos miramos juntos? ¡Ay, ay, ay!
¿Qué he sacado
con los nombres, ay, ay, ay, 
estampados en el muro? ¡Ay, ay, ay!
Como cambia el calendario, ay, ay, ay, 
cambia todo en este mundo. ¡ay, ay, ay!

¿Qué he sacado con el lirio, ay, ay, ay, 
que plantamos en el patio? ¡Ay, ay, ay!
No era uno el que plantaba, ay, ay, ay, 
eran dos enamorados. ¡Ay, ay, ay!
Hortelano, tu plantío con el tiempo
no ha cambiado. ¡Ay, ay, ay!

¿Qué he sacado
con la sombra, ay, ay, ay,
del aromo por testigo? ¡Ay, ay, ay!
y los cuatro pies marcados, ay, ay, ay, 
en la orilla del camino. ¡Ay, ay, ay!
¿Qué he sacado con quererte, ay, ay, ay,
clavelito florecido? ¡Ay, ay, ay!

Aquí está la misma luna, ay, ay, ay, 
y en el patio el blanco lirio, ay, ay, ay, 
los dos nombres en el muro, ay, ay, ay, 
y tu rastro en el camino, ay, ay, ay,
pero tú, palomo ingrato, ay, ay, ay,
ya no arrullas en mi nido, ay, ay, ay, 
¡Ay, ay, ay, ay, ay! 


Letra: Violeta Parra
Voz: Natalia Lafourcade
(En manos de Los Macorinos)



26 de julho de 2019

criação


sobre quando foi concebido
o que não mais se acha
ainda restam verdades
que nem o tempo traz
- e leva para não contar... 
das retinas que espreitaram
os tetos das cidades
e os rastros das pegadas
desfeitas
sobre estradas
e outros lugares
antes feitos de água, 
rios e mares,

dos fósseis
jamais encontrados
no Deserto do Saara,

do instante no Egito
em que o vento beijou
pela primeira vez
uma pirâmide sobre o pico,

dos ancestrais
da África Atlântica, 

dos quinhentos anos
para trás
para toda gente
que não viu
o que existiu antes
nem mais para frente,

do que esteve livre
de morar em um livro
que antes de virar História, 
muito antes já estava vivo, 

do "descobrimento" do Brasil, 

da primeira pincelada
em uma tela, 
de uma imagem
saída da cabeça
materializando 
o que existia dentro dela, 

dos segredos dos papéis
que embrulharam peixes
em algum ponto do Norte
ou do Sul da América do Sul
tingindo escamas como aquarela, 

até de quando foram dados
nomes às coisas, 
quando veio a lume 
- em todas as línguas -
a palavra: criação. 

23 de maio de 2019

Torres por mim

a cidade de Torres comemorou 141 anos de emancipação política administrativa no dia 21 de maio. esse lindo lugar em que eu nasci, que fica no litoral norte do Rio Grande do Sul e faz fronteira com o estado de Santa Catarina (com o Rio Mampituba dividindo os dois estados), é conhecido por suas praias, a ilha dos Lobos (uma pequena ilha em frente à cidade e que abriga lobos-marinhos e leões-marinhos em determinadas épocas do ano), seus morros (os paredões) e seu Festival de Balonismo, período do ano em que, além do verão, a cidade costuma receber muitos turistas. embora seja uma cidade pacífica, minha relação com ela nem sempre foi pacífica, houve muitos momentos em que tive a sensação de não caber nela, não me encaixar muito bem dentro da cidade. fui embora por volta dos 18 anos de idade e, desde então, morei em alguns outros lugares e foi nesses outros lugares que comecei a ter uma nova percepção (ainda bastante crítica, sempre, mas muito mais afável) sobre a cidade em que nasci e fui criado. com tudo que nela falta e sobra (como há sempre algo que falta e algo que sobra em qualquer cidade do mundo), eu amo Torres.


fotografias de minha autoria (de diferentes momentos pela cidade), exceto as duas últimas, que foram retiradas de um site de Torres (Viva Torres):





















19 de abril de 2019

animalium

ainda que qualquer bicho
seja melhor
do que qualquer pessoa,
todo ser humano -
o único animal
que é também
desumano -,
é um pouco rã,
coruja, lagarto...
transmuta-se
em diferentes cores
conforme as suas
circunstâncias:
às vezes se camufla
de imaculado, virtuoso
para no instante seguinte
ser torpe, ardiloso.
vivemos em um jogo
tartufo de interesses
ao paladar
de nossas próprias
conveniências,
por melhores que sejam
nossos intentos,
propósitos,
todos somos,
enfim, como escreveu
Eduardo Galeano,
o que fazemos
para transformar
o que somos.

2 de abril de 2019

traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa e pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


(poema de Ferreira Gullar
na voz de Adriana Calcanhotto)