morei durante algum tempo em São Paulo e minha chegada na cidade coincidiu com o período em que uma editora de livros estava se organizando para inaugurar um centro cultural onde haveria uma livraria e também um grande espaço em que funcionaria uma galeria de arte. fui contratado para trabalhar nesse local, onde acabei ficando por um bom tempo. além de lançamentos de livros em um espaço da própria livraria, havia, também, uma grande sala onde aconteciam palestras e saraus literários. eu participava, quando era possível, de alguns desses encontros. tive a oportunidade, então, de conhecer vários escritores, poetas e artistas plásticos de muitas partes do Brasil.
em um desses encontros, que geralmente aconteciam aos sábados, teríamos a participação do escritor e poeta Glauco Mattoso. eu não sabia muito sobre ele até então, sabia, por exemplo, da música "Língua", em que ele foi citado por Caetano Veloso, e, a partir disso, como uma porta de entrada, eu fui ler, muitos anos atrás, alguns dos sonetos do Glauco, que nunca foi o tipo de poema que eu costumava ler, pois sempre preferi o verso livre. eu sabia, também, apenas de maneira mais superficial sobre a vida do escritor e poeta, mas que já era suficiente para me fazer participar daquele encontro literário com certa curiosidade. eu supunha, por causa da ideia que fazia sobre ele, que veria e ouviria uma pessoa que seria talvez apenas sarcástica falando, talvez meio chocante para alguns (não para mim), mas o que aconteceu foi que me surpreendi com o fato de ele ter parecido ser, e ser, na verdade, não apenas muito inteligente, como eu já imaginava, mas também uma pessoa com um modo de se expressar até mesmo, em muitos momentos, elegante, delicado, inclusive.
no final desse encontro, enquanto as pessoas conversavam na livraria e tomavam café, etc., o Glauco e eu conversamos um pouco e acabamos trocando nossos endereços de e-mail. algum tempo depois disso, semanas depois, escrevi para ele, que não demorou para me responder e ainda me surpreendeu me pedindo o endereço da minha casa porque queria me enviar de presente um dos muitos livros que ele já havia publicado. a partir disso mantivemos contato e ele começou a me enviar através do correio alguns dos seus livros, mesmo um longo tempo depois, quando eu já havia ido embora de São Paulo e estava morando no meu estado.
eu sempre pensei, e com o tempo senti que pude ir confirmando isso, que os escritores e poetas (não todos, é claro, mas quase isso) são mais interessantes escrevendo do que falando. tenho essa mesma impressão em relação aos artistas, cantores, atores, pintores, o que for, que também me parecem muitas vezes mais interessantes através dos seus trabalhos do que fora deles. um cantor ou cantora, por exemplo, se me parecer interessante em cima de um palco, mas fora dele, na vida, não, ou se de repente for alguém que dê declarações estranhas, que diga coisas que eu considere estúpidas, por exemplo, instintivamente eu perco muito (e totalmente, em alguns casos) do interesse pela arte que a pessoa já tenha produzido ou possa ainda produzir. sim, para mim não há como desconectar a vida da obra de quem quer seja.
mas há os casos, as exceções, em que a pessoa me desperta tanto interesse através do que ela representa, vive e diz para além do que apresenta, compartilha como sua arte ou seus escritos, seja o que for, que eu acabo tendo ainda mais interesse por essa arte ou por esses escritos, e o Glauco é, para mim, um desses casos. além disso, é uma pessoa muito generosa, e como não gostar de gente generosa? fácil de não gostar, na minha opinião, é de gente intocável que, simbolicamente, fica no alto de uma torre como se olhasse os outros de cima, muitas vezes podendo até mesmo ser talentosa, mas agindo como se fosse inacessível, sem dialogar com seu público para além de sua arte ou de seus livros. há tanta gente por aí que mesmo através de blogues, por exemplo, parece preferir escrever como se estivesse falando somente para as paredes, o que me faz pensar no porquê da necessidade de alguém manter um blog se é para não haver algum diálogo com leitores, afinal, quem escreve quer ser lido, e quem quer ser lido espera por algum tipo qualquer de retorno, não é mesmo? Glauco representa, para mim, muito do que eu admiro em alguém que dedica sua vida para a palavra escrita, seja lá de que forma ou quanto for: além de usar bem as palavras, é, antes de tudo, uma pessoa de mente aberta, inspiradora, de pensamentos que não ficaram cristalizados pelo tempo.
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na orelha do livro Poética na Política (Geração Editorial, 2004), o editor Luiz Fernando Emediato escreveu sobre Glauco Mattoso:
"Glauco Mattoso é um caso único na literatura brasileira. Esse estranho e prolífico poeta incendiário - o mais maldito dos poetas brasileiros - era apenas um daqueles que, nos anos 70, irreverente e jovem, escandalizava os burgueses com seus versos furibundos e anti-higiênicos, impressos em qualquer papel e vendido nas ruas de mão em mão.
Foi-se a poesia marginal e alguns poetas vestiram paletó e gravata para cuidar de suas vidas na Bolsa de Valores. Outros perderam o encanto e gosto pela poesia. Houve até quem se matasse de desgosto ou de desencanto pela própria vida, sem dúvida um direito. Glauco, que tinha motivos para se desgostar - como Borges, foi ficando progressivamente cego, coisa terrível para quem adora ler -, continuou poetando. E, que coisa estranha: quanto mais cego, mais ele parece enxergar o que se deve criticar com seus versos cáusticos.
O soneto, forma clássica eternizada por Camões e Shakespeare, não é mais utilizado pelos poetas modernos - mas é com ele que Glauco Mattoso ataca (e como ataca!) a trágica mediocridade da política brasileira, sem deixar pedra sobre pedra. Neste livro, que contém - numerados - 100 sonetos selecionados de sua impressionante produção, Glauco retoma um de seus temas prediletos.
Um crítico, Leo Gilson Ribeiro, já escreveu que Glauco Mattoso é um misto de Baudelaire e Rabelais, com a elegância de Camões e Milton. É verdade. Seus sonetos primorosamente rimados e ritmados revelam uma técnica perfeita. O que choca neles é mesmo o tema: a corrupção, a podridão, o chulé, o mau-hálito, os maus costumes daqueles que infelizmente ainda comandam a vida dos cidadãos que neles... votam!
Na linha de Bocage e Gregório de Matos - mas muito mais divertido! -, Glauco, como já se escreveu, continua pondo e dedo em todas as feridas e pisando em todos os calos. A leitura é uma delícia. E, como já disse o próprio Glauco uma vez, de duas, uma: ou o leitor se desintoxica ou se envenena de vez. Bom proveito!"
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alguns dos sonetos do livro Poética na Política:
Sádico
Legal é ver político morrendo
de câncer, quer na próstata ou no reto,
e, pra que meu prazer seja completo,
tenha um tumor na língua como adendo.
Se for ministro, então, não me arrependo
de ser-lhe muito mais que um desafeto,
rogar-lhe morte igual à que um inseto
na mão da molecada vai sofrendo.
Mas o melhor de tudo é o presidente
ser desmoralizado na risada
por quem faz poesia como a gente.
Ele nos fode a cada canetada,
mas eu, usando só o poder da mente,
espeto-lhe o loló com minha espada.
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Achincalhado
Não querem que avacalhe? De que jeito,
se são os próprios caras que na imagem
da casa cagam, como putas agem
e só papel ridículo têm feito?
Além de legislar sempre em proveito
do bolso e de outros próprios, sacanagem
maior vem da propina e da vantagem
por fora, do indevido e do suspeito!
Ali, tem "comissão" duplo sentido,
de grupo que investiga e de caixinha,
mas só pejorativo ele tem sido:
Suborno, em si, se é prática mesquinha,
pior ainda é quando este bandido
inquire aquele e arquiva a "picuinha"!
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Destrambelhado
Perdendo a paciência, ultimamente,
me vejo com políticos! Parece
até que antigamente a gente esquece
de tanta falcatrua e já nem sente!
Mas hoje há mais razão pra que se atente
aos métodos daninhos de quem tece
a teia financeira, que carece
duma investigação profunda e urgente.
Sabendo que a devassa nunca sai
e vendo que o dinheiro vai sumindo,
acabo expondo a raiva que me trai!
Se pego um desses caras, vai ser lindo
o jeito com que o mato! Ó Deus, me dai
a chance, que o rancor conservo, infindo!
*
Dialético
A síntese do avanço consciente
é aquele velho método sagaz
que preconiza dar um passo atrás
a fim de dar dois passos para a frente.
A tese se apresenta incoerente,
mas a contradição já se desfaz
em face da estratégia, que é de paz,
embora lembre a marcha combatente.
Antítese do avanço é o retrocesso,
ao obscurantismo associado,
e nesse ponto exato me interesso.
Questão de ordem faço deste dado:
tão logo fiquei cego, o passo meço;
tropeço, mas não caio: adianto o lado.
*
Antológico
As frases memoráveis da República
deviam ter, na pedra ou voz gravada,
registro, qual legenda avacalhada
num filme de comédia ou cena lúbrica.
"Prometo que agirei na vida pública
da mesma forma que ajo na privada!";
ou: "Fi-lo porque qui-lo", tão surrada;
ou: "Não me deixem só!", suprema súplica.
Também vou proferir, eu que não minto,
a pérola imortal de quem adora
mandatos, completado o quarto ou quinto:
"Da vida partidária saio agora.
Já fiz o que devia, e alívio sinto.
Caguei, limpei a bunda,e vou-me embora!"
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Iluminista
Voltaire disse que nunca concordava
com nada que você queira dizer,
mas que defenderia até morrer
o seu direito ao uso da palavra.
Enquanto a Inquisição fere, escalavra
e queima vivo quem ousa descrer,
defende o bom sacrilégio o prazer
do livre-pensador, labuta brava.
Irônico destino esse que pega
safados pecadores, sobre os quais
recai missão igual à de quem prega!
Feliz fatalidade essa que faz
duma lúcida dúvida a fé cega
de que as opiniões são desiguais!
*
Hediondo
Estupros, latrocínios e sequestros,
o horror do genocídio racial
merecem punição especial:
castigos, não sinistros, porém destros.
O riso é o mais sarcástico dos sestros
que crispam o desenho facial.
Dos crimes ri o Mentor, Senhor de Tal,
o Réu, maior de todos os maestros.
Na certa o Onipotente é quem responde
por tudo que acontece pra quem erra,
e atrás da impunidade Ele se esconde.
Levá-lo a Nuremberg, após a guerra!
Puni-lo com prisão perpétua! E onde?
No inferno que pra nós criou: a Terra!
*
Civil
Aqui, de ditadura em ditadura,
democracia cai nos intervalos.
Cavalaria é própria de cavalos.
Um homem pode ser cavalgadura.
República com fardas se inaugura.
As botas fazem bolhas, causam calos.
Moeda fraca escorre pelos ralos.
Fuzil, neste país, ninguém segura.
Um dia, a economia desmorona.
Golpismo, Estado Novo, Redentora,
acaba tudo em pizza, em puzza, em zona.
Passa de mão em mão, como se fora
a troca duma guarda sem dragona,
sem honra ou tradição, só sucessora.
(na imagem, oito livros de Glauco Mattoso sobre a mesa:
- Tripé do Tripúdio e outros contos hediondos - São Paulo: Tordesilhas, 2011.
- Contos Hediondos - São Paulo: Demônio Negro, Annablume, 2008.
- A Planta da Donzela - Lamparina editora, 2005.
- O cancioneiro carioca e brasileiro - São Paulo: Annablume, 2008.
- A letra da lei - São Paulo: Annablume, 2008.
- Faca cega e outras pelejas sujas - São Paulo: Annablume, 2007.
- A aranha punk - São Paulo: Annablume, 2007.
- Poética na Política - São Paulo: Geração Editorial, 2004.)