21 de dezembro de 2018

máxime

(na Praia da Cal)


o mar já estava aqui antes de mim. sagrado é poder abrir os olhos - vejo apenas existência, transitoriedade, exuberância inata, intrínseca em mudanças incessantes. pertenço ao universo - capaz de bastar a si mesmo (quem diz crer em deus, mas não o vê no mar, não o verá em nenhum livro).

19 de dezembro de 2018

Estrela Ruiz Leminski e Téo Ruiz: "Filho de Santa Maria"


Aqui tô eu pra te proteger
dos perigos da noite e do dia
Sou fogo, sou terra, sou água, sou gente
Eu também sou filho de Santa Maria

Se dona Maria soubesse
que o filho pecava
E pecava tão lindo
Pegava o pecado, deixava de lado
E fazia da Terra uma estrela sorrindo

Hoje eu saí lá fora
Como se tudo já tivesse havido
Já tivesse havido a guerra
A festa já tivesse havido
E eu fosse puro espírito


(Paulo Leminski)

16 de dezembro de 2018

É no ínfimo que eu vejo a exuberância


Mosca dependurada na beira de um ralo -
Acho mais importante do que uma joia pendente.

Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos
que os antigos egípcios faziam
Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.

O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto -
Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.
Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais importante
do que uma Usina Nuclear.

As coisas que não têm dimensões são muito importantes.
Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus pronomes
do que por seu tamanho de crescer.

É no ínfimo que eu vejo a exuberância.


Manoel de Barros.
Poesia completa - São Paulo: LeYa, 2013.


(imagem: Raul Branco)

15 de dezembro de 2018

coração

sobre o lado
esquerdo
do peito,
não tem jeito:
escrevem por aí
a torto e a direito.

13 de dezembro de 2018

azulcinação





pelos céus
pelos oceanos
água-viva da lua
cirurgião-patela
(Dory a nadar)
pinguim-fada
gaio e garça
ararinha: azul
em extinção
que também voa

Yves Klein (cor
patenteada):
1001 balões
de gás hélio
no céu de Paris
e antropometria
- azul calcinha sem

Picasso, um período

ciano e magenta
em sobreposição
= casa da Frida
Kahlo: cobalto

cerúleo
cárdeo
celeste

safira
azurita
tanzanita
chacantita
labradorita
água-marinha:
tons endurecidos

no espaço
Netuno, Urano
Terra - água
transparente
do alto é azul

e o mar
pouco
a pouco
engolindo
Tuvalu
e Kiribati

enquanto
isso, no Brasil
Roberto Carlos
melosamente
ainda canta
os detalhes
tão pequenos
de nós dois.



(imagem: Yves Klein)

11 de dezembro de 2018

Manchinha



O caso da cadela Manchinha, que morreu depois de ter sido envenenada e cruelmente agredida com uma barra de metal por um segurança (asqueroso) do supermercado Carrefour, em Osasco (SP), ganhou enorme repercussão nacional. Eu fiquei dilacerado quando soube do caso, ainda mais depois que vi as fotos, essa em que ela ainda estava viva e aparentemente bem, linda com as patinhas cruzadas e olhando fixamente para a câmera de quem a fotografou, e outra em que ela estava envolta em sangue, uma imagem horrível. Fui pesquisar mais sobre o caso e descobri que esse não é um caso isolado, há um histórico de mortes de animais nas unidades do Carrefour e até mesmo um caso grave de racismo contra um homem negro ocorrido há alguns anos, na mesma unidade em Osasco, quando ele foi espancado por seguranças no estacionamento acusado de roubar o próprio carro, felizmente um tempo depois ele recebeu indenização da empresa. Mas a cadela Manchinha não teve a mesma sorte de poder seguir viva, assim como os outros animais (li sobre suspeitas de alguns funcionários de diferentes unidades do Carrefour já terem envenenado pombos, gatos abandonados e um caso mais recente, ocorrido por volta de um mês atrás, no Carrefour da Rodovia Raposo Tavares, São Paulo, em que um cachorro abandonado foi morto com chutes). 

Não faço parte de nenhuma rede social, mas soube que o caso da Manchinha rendeu as mais diversas manifestações. Gente indignada, e com razão de estar, e gente estúpida e insensível menosprezando a crueldade do caso. Eduardo Bosta, por exemplo, aquele cantor sertanejo mais conhecido como Eduardo Costa, que ficou rico cantando e compondo aquelas músicas horrorosas, deu a entender que a comoção das pessoas sobre o caso era "mimimi", comparando o caso da cadela Manchinha com o caso de uma senhora de mais de cem anos de idade que foi recentemente assassinada de forma igualmente cruel. Sim, um assassinato horrível de uma senhora já bem idosa, mas o caso da cadela Manchinha, certamente por ter sido registrado em vídeo, acabou ganhando mais destaque, e não é por se tratar de uma cadela que isso deve ter menos relevância ou ser tratado com menosprezo. Sobre o caso da senhora cruelmente assassinada, Eduardo Bosta disse que ninguém comentou, que aí, nesse caso, não houve comoção alguma, mesmo ela sendo um ser humano e não "apenas" um animal. Alguém na internet indagou: "e o Eduardo Costa por acaso em algum momento disse algo quando essa senhora foi assassinada?". Claro que não. Ele só foi comentar algo sobre o caso dessa senhora depois de ver que todos estavam comentando sobre o caso da cadela Manchinha, assim aproveitando a oportunidade para ganhar atenção com as estupidezes que ele costuma dizer.

Outro Eduardo que eu soube que gravou um vídeo comentando o caso da Manchinha foi o Eduardo Bolsonaro, o filho do nosso novo presidente "Bozonaro". Não vi o vídeo, não tenho o menor interesse em ver qualquer coisa que esse idiota tenha para dizer, soube apenas que ele se mostrou indignado com o caso da Manchinha. Mas, não esqueçamos, o Bozonaro pai disse um tempo atrás, não muito tempo, e isso está registrado em vídeo também, que a caça aos animais (e falando dos animais de uma forma geral mesmo) é um "esporte saudável" e que, se ele se tornasse o novo presidente (o que logo vai se tornar um fato), a caça aos animais teria "burocracia zero" no Brasil. Bozonaro filho é daqueles filhos que dizem amém para qualquer coisa que o papai diga, e sobre esse assunto da caça aos animais não deve ser diferente. Para ele, a morte da Manchinha, especificamente, que causou enorme repercussão, foi motivo de indignação, mas em relação aos outros animais, os milhares que são mortos diariamente e que ninguém sabe porque não acabam em fotos em redes sociais, nos jornais, etc., esses tantos que são diariamente agredidos, anonimamente mortos, aí esses que se danem, né?

Dois Eduardos e ambos representam, de diferentes formas, o pensamento de muitas e muitas pessoas. Um fala sobre a crueldade contra uma cadela como se isso fosse algo que deveria ser tratado com menor importância e o outro se mostra indignado sobre o caso, mas ignora os tantos outros casos igualmente cruéis que acontecem todos os dias em todos os cantos do país (somente em São Paulo, a maior cidade do Brasil, houve, neste ano, desde janeiro até o final de novembro, aproximadamente 25 denúncias de maus-tratos contra animais por dia, a cada dia do ano, fora os tantos outros casos em todos os outros lugares do Brasil e que, na maioria das vezes, não vêm à tona, ninguém acaba sabendo). 

Há muitas pessoas que pensam que lutar pela causa dos animais, ser ativista, ou mesmo se indignar com esses casos horríveis que acontecem, é quase como se fosse uma futilidade, algo irrelevante, são pessoas que geralmente pensam que os bichos nascem somente para servirem como alimento (e os que não servem para isso, como os cachorros e gatos abandonados, por exemplo, são apenas como sujeiras das ruas). Li em algum lugar, agora não me recordo exatamente onde, uma pessoa comentando algo mais ou menos assim: "muitas dessas pessoas que estão por aí se dizendo chocadas com a morte da cadela no Carrefour, indignadas, saem do próprio mercado com as mãos cheias de sacolas com pedaços de cadáveres de peixes, frangos, porcos, bois..." É verdade, em geral as pessoas nem sequer pensam que os animais que elas comem, além de muitas vezes terem tido uma vida cruel, sendo tratados como máquinas enquanto vivos, também foram mortos de uma forma cruel (e essa é uma das razões pelas quais já faz alguns anos que eu deixei de sair dos mercados com pedaços de qualquer tipo de cadáveres nas sacolas). "Mas e as milhares de pessoas que foram assassinadas no Brasil somente nesse ano, as crianças que vivem nas ruas, etc.?", muitos indagam na tentativa de diminuir o horror que acontece diariamente também com os bichos em todas as partes do mundo (com a diferença de que o número de animais mortos diariamente em casos de agressão, em matadouros, em laboratórios, nos oceanos, etc., é absurdamente maior, e eu sempre me pergunto: o que será que fazem para ajudar alguém essas pessoas que, quando acontece um caso como esse da Manchinha, falam como se a violência cruel contra um bicho fosse algo menos relevante?). Neste lugar em que vivemos, sobre o qual pisamos, que chamamos de Terra, isso que chamamos de empatia deve ser, ou deveria ser (porque na verdade não é), algo sentido e exercido em relação a todos os seres, não somente aos humanos. 


Deixo aqui um trecho de um poema do Maiakóvski: 


"(...) Pois, tomai-me para
guarda dos bichos. 
Gosto deles.
Basta-me ver um desses
cães vadios,
como aquele de junto à
padaria,
um verdadeiro vira-lata!
e, no entanto,
por ele
arrancaria meu próprio
fígado: 
Toma, querido, 
sem cerimônia, come!"

8 de dezembro de 2018

horizontes II


cor da linha do horizonte
onde áfricas escondem-se,
não vejo a tez: rosa, preta
laranja, amarela
são só talvez
(à espera
de alumbramentos,
eu canto, eu canto
porque o instante existe)

7 de dezembro de 2018

sobre as dúvidas

há certezas que enferrujam
as juntas, são mal-humoradas,
sofrem de dores lombares.
quem pensa estar sempre certo,
está equivocado
(não vai além das bordas)
prefiro amolecer as dobras
transbordando dúvidas
e com perguntas expandir a alma
para que nela caiba mais mundo.

5 de dezembro de 2018

no jornal Zero Hora



mais um poema meu foi publicado no jornal Zero Hora (quarta-feira, dia 5),
dessa vez o poema "dos devires":


nada é. 
tudo está. 
as chagas, as árvores, 
as fachadas das casas, 
das igrejas, 
os lençóis sujos dos puteiros, 
a saliva dos monges, 
as línguas bifurcadas das cobras, 
dos seres vivos
à matéria inorgânica, 
tudo denuncia
a passagem do tempo:
existir é transmutar. 

2 de dezembro de 2018

um naco de simplicidade


benditos os que fazem
o almoço de domingo
enquanto cantam, dançam
e riem de si mesmos
ouvindo qualquer estação
mais popular de rádio,
os que nem estão pensando
em dizer nada de mais,
nada de muito eloquente,
nada de grandiloquente,
nada de impressionante,
apenas sentindo o cheiro
da cebola fritando no óleo
enquanto o cachorro e o gato
correm da sala para a rua.

benditos os que
nem se pensam poetas
- ou não se sabem -,
mas que veem poesia
onde quase ninguém
mais consegue,
olham além da janela
enquanto cozinham
e percebem que o sol
não é apenas
uma bola amarela no céu,
notam sempre todos
os desenhos feitos
por todas as nuvens
e não perdem a capacidade
de serem surpreendidos por elas
porque não estão olhando somente
para dentro de si mesmos
- transparentes para que não
possam ser manchados, vivem.


(imagem: JMW Turner)

28 de novembro de 2018

coexistência


não tenho classe.
não tenho
bons modos.
não vim para ser
complacente
a qualquer custo.
não sou água
com açúcar.
não sou indireto.
não tenho medo
do que quer dizer
aquilo que digo.
não me meço
por números,
diplomas,
curtidas,
cédulas.
não valho,
para mim,
o que eu tenho,
eu sou, para mim,
o que eu sou.
não sou um autômato.
não sou cidadão de bem,
admito que erro também.
entre a matéria
e o impalpável,
a convivência
é uma arte
- e a arte também
é indômita, espinhosa.
não sou unilateral.
assumo minhas sombras:
em cada um de nós
brilha um sol por dentro
e há também o escuro
sombrio das madrugadas.


(imagem: Alberto Guignard)



25 de novembro de 2018

gris


de repente o céu acinzentou
como noite que chega
antes da hora
- como volta e meia
as lembranças
que esquecemos
ressurgem
mudando a cor
do dia em nós dentro

(hoje, um teto gris
de nuvens traz a cor
de uma tarde
lá pelos idos
de 1900 e guaraná
com rolha)

é chuva sobre a cidade,
passageira,
noite de mentira
que não rende estrelas

(eu vendo fora e dentro:
lá em cima
um faz de conta
da natureza,
aqui dentro
anos passando
sob o lado oculto
das retinas)

estrelas quando acendem
lembram-me
que só com elas
a noite é verdadeira.
observo.
absorvo.

21 de novembro de 2018


"Jesus é 'dahora', o que fode é o fã-clube."

20 de novembro de 2018


"Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao céu o fumo de um cigarro
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!"

Augusto dos Anjos



17 de novembro de 2018

Wislawa Szymborska: "Tem aqueles que"

Tem aqueles que executam a vida de modo eficaz,
põem ordem em si mesmos e ao seu redor.
Têm resposta correta e jeito para tudo.

Adivinham logo quem a quem, quem com quem,
com que objetivo, por onde.

Batem o carimbo nas verdades únicas,
colocam no triturador os fatos desnecessários,
e as pessoas desconhecidas
em fichários de antemão destinados a elas.

Pensam só o quanto vale a pena,
nem um instante mais,
pois detrás desse instante espreita a dúvida.

E quando recebem dispensa da existência,

deixam o posto
pela porta indicada.

Às vezes os invejo
- por sorte isso passa.


in Um Amor Feliz,
tradução de Regina Przybycien,
Companhia das Letras, São Paulo, 2016.

15 de novembro de 2018

Adriana Calcanhotto: "Calor"


tarde turquesa
quarenta graus
talvez porque você não esteja
tudo lateja
tarde sem nuvem
cinquenta graus
talvez por sua ausência
tudo derreta
noite sem ninguém
nada se mexe
eu sonho nosso amor a sério
e você em outro hemisfério
enquanto tudo derrete
enquanto tudo derrete
enquanto tudo parece
derreter

14 de novembro de 2018

12 de novembro de 2018

inefável


sem palavra mascarada,
frase feita, falso nacarado
fora de hora sobre a língua
colocado, pelo chão,
sobre o tapete,
patas, bigodes,
manchas pretas.
qual conchas
no fundo do mar,
poesia não apenas
dentro de poemas,
o silêncio
do meu cachorro,
ou o instante de latido
- com nexo -,
produz pérolas.

11 de novembro de 2018

Ó


"Sem conseguir escolher se a vida é bênção ou matéria estúpida, examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, cifras, letras de fumaça, rima feita de bosta, imensidão aprisionada numa cerca, besouros dentro do ouvido, fosforescência do organismo, batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte, olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem?" (p. 18)

10 de novembro de 2018

Wilson Torres Nanini: "social"


às vezes, bem no meio da meia-
noite doce e bárbara do orgasmo,
pousa, sem cheiro, sem canto,
uma ave negra no âmago
: atravessa-me o cerne uma
lembrança canhota,
que me põe poeta
e, então, me ocupo
de toda ausência e dor do mundo

às vezes, em meio à meia-
febre álacre e explosiva da festa
– vaidade das vaidades –
fico sem nudez, sem riso,
e um silêncio pétreo feito de
cânticos endurecidos me grita
áfricas e nordestes,
orfanatos e asilos
: uma vontade como a de uma
serra leoa de devorar os eua
e a de uma capelinha de roça
de engolir catedrais vaticanas



(imagem: Kevin Carter)

4 de novembro de 2018

longa carta para ninguém

eu nunca soube o que queria ser quando crescesse. na escola, achava engraçado quando alguns colegas falavam com tanta convicção sobre o que queriam ser, geralmente a mesma coisa que seus pais, nada muito original, e eu pensava: ainda nem têm pentelhos e já acham que sabem tudo. quanto a mim, sei que quanto mais aprendo, mais sei, através do que até então não sabia, que ainda tenho muito o que aprender. nunca gostei de aprender algo por obrigação. sempre pensei que estudar matemática, por exemplo, para quase nada me serviria. tenho dificuldade em fazer contas e decorar sequências de números. sempre preferi história, geografia, literatura e português. gosto de latim e das línguas de origem latina, principalmente o espanhol, acho bonito o idioma francês. sou de gêmeos com ascendente em escorpião e lua em câncer. não sei muito bem qual o resultado dessa mistura, o que ela significa, mas penso ter bem evidentes em mim algumas das características que dizem ser típicas de cada um desses signos, principalmente gêmeos e escorpião. todos somos feitos de dualidades, mas penso que em mim isso é bastante perceptível. além de muitas outras razões, gosto de escrever porque é a maneira através da qual sempre me expressei melhor. falando às vezes me arrependo do que digo. os silêncios nunca erram, mas às vezes me arrependo de alguns também. às vezes escrevo para me vingar. em alguns momentos gostaria de ser melhor do que sou, em outros gostaria de conseguir ser pior do que sou. ninguém é unilateral. andar na linha, qual um trem, é saber aonde ir, mas também para sempre levar consigo uma aflição permanente da possibilidade de descarrilar-se. somos mais do que o que dizemos. ou ainda podemos ser menos. dizer é também ficar restrito, como olhar para trás da órbita e enxergar apenas um detrito do Universo inteiro que por dentro temos. como escreveu o Ferreira Gullar, "uma parte de mim é permanente, outra parte se sabe de repente". quando me perguntam, por exemplo, se gosto mais do dia ou da noite, digo que gosto, em medidas iguais, tanto do dia quanto da noite. e assim também é sobre o frio e o calor, o salgado e o doce, os sons e o silêncio... já morei em algumas cidades em diferentes estados do país, mas não consigo viver por muito tempo longe de lugares com mar. água de chuveiro não substitui cachoeiras. tenho uma relação às vezes contraditória com a cidade em que nasci. para mim, é uma das cidades mais lindas que existem, eu a amo de diversas formas, mas às vezes tenho a sensação de que não caibo tão bem nela. em qualquer lugar do mundo sempre há, haverá, algo que falta e algo que sobra. amo a natureza e, diferente do que acontece com muitas pessoas, a maioria, nunca esqueço de que não podemos ser dissociados dela. a natureza não precisa de ensinamentos, ela que nos ensina, se quisermos. tenho fascínio por algumas cidades antigas do mundo, pirâmides, construções históricas, mas acho que qualquer coisa que tenha sido construída pelos seres humanos não é mais bonita do que qualquer criação da própria natureza. gosto de árvores. sou uma no meu sobrenome. se há outras vidas, às vezes gosto de pensar que em alguma eu tenha sido algum tipo de druida. amo os bichos e às vezes os invejo, todos sabem a que vieram sem se perguntar de onde e por quê. uma das coisas que mais gosto de fazer é aprender com os bichos, observá-los, faço isso sempre com o meu cachorro, que é para quem eu mais facilmente demonstro afeto no mundo. eu me comunico com ele através de palavras que invento e com as quais ele sempre reage, às vezes rio de mim mesmo. já tive um gato que parecia entender tudo o que eu dizia. gosto de admirar formigas e, dependendo do lugar, muitas vezes caminho olhando para o chão com receio de esmagá-las. os bichos não precisam de filosofia. e nós, "uns macacos pelados e pretensiosos", como disse a grande Elke Maravilha, caçamos milhares de porquês para os nossos instintos. às vezes penso sobre quantas vozes podem caber dentro da minha consciência. em muitas determinadas circunstâncias, somos antropocêntricos, não há um ser humano que não pense, em algum momento, que o seu umbigo seja o centro do Universo. não gosto de redes sociais. até o surgimento delas, às vezes pensava que somente os artistas, atores, cantores, poetas e escritores eram de algumas formas egocêntricos. agora o egocentrismo raramente tem a ver com sensibilidade. se eu pudesse ser um bicho, escolheria ser algum dos que podem voar. gosto de pássaros, gosto de águias, condores, corujas. gosto também dos felinos. já assisti a muitos documentários sobre todos os tipos de animais, tenho muita curiosidade sobre os dinossauros, penso muito nos animais que já foram extintos e nos que ainda correm esse risco. gosto das três cores primárias (inclusive porque a partir delas podemos obter as outras). gosto também de cores em tons de terra. às vezes gosto de tomar banho com a luz apagada e a porta aberta para que entre no banheiro apenas uma claridade suficiente que não seja incômoda aos olhos. gosto de luz de abajur. gosto de cheirar os livros, já trabalhei em uma livraria que foi aberta por uma editora e gostava de sentir os diferentes cheiros de cada um dos livros, às vezes gosto de sentir o cheiro dos livros que tenho em casa. gosto de pedras. gosto de chuva. gosto de mastigar pedras de gelo antes que o líquido no copo acabe. acho que desenho bem. acho que desenho mal. embora eu não siga nenhuma religião, às vezes gosto de conhecer e visitar igrejas, principalmente quando estão vazias. gosto também do silêncio dos cemitérios, de caminhar entre os túmulos e ver as fotografias dos mortos. tenho mais dúvidas do que crenças sobre Deus, tenho instantes de ateísmo, mas em muitos momentos também penso que a seguinte frase escrita por Álvaro de Campos, o heterônimo de Fernando Pessoa, de algum modo também pode me representar: "há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente". às vezes politeísta, às vezes panteísta. às vezes invejo os que creem com muita força em algo específico sem se tornarem bitolados, penso que deve ser reconfortante. o vento é, para mim, como uma representação da espiritualidade, sentimos porque nos toca e não vemos. Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Drummond e Hilda Hilst são os poetas que mais admiro. meus ouvidos são promíscuos com a música, gosto de ser contagiado por novidades sonoras, gosto de muita coisa e de coisas muito diferentes entre si, assim também é sobre os filmes. uma lembrança recorrente sobre a minha infância é estar com minha família na praia, em um domingo de sol, e estarmos comendo melancia e de repente no som do carro começar a tocar bem alto a música "Como nossos pais", de Belchior, na voz da Elis Regina. "Alucinação", de Belchior, e "Falso Brilhante", da Elis Regina, são dois dos discos que mais gosto da música brasileira. tenho também grande admiração por artistas latino-americanos de diversos países, Violeta Parra, Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Víctor Jara, Lila Downs, Chavela Vargas, Nahuel Pennisi, etc. gosto também de Beatles, Bob Marley, David Bowie e da banda Queen. ouço muita música brasileira. "Sem a música, a vida seria um equívoco", escreveu Nietzsche, e eu concordo. se sobrasse apenas uma música no mundo, para mim seria a música peruana "El cóndor pasa". gosto do hino brasileiro. assisti umas cinco vezes ao filme "Tudo sobre minha mãe", do Almodóvar. "A Excêntrica família de Antônia" é um dos meus filmes preferidos. Gosto de "Edward Mãos de Tesoura", às vezes me sinto inadequado como ele em alguns lugares, também sou bom em cortar cabelos. as mãos e o rosto são as partes que mais observo em alguém. não gosto de azeitonas. não como nenhum tipo de carne há alguns anos. gosto de cozinhar. gosto de saladas. gosto de goiabas (vermelhas, das mais verdes por fora). aprendi a dirigir por volta dos treze ou quatorze anos de idade, sou um bom motorista, mas minha habilitação está vencida há alguns anos e eu não me importo nem um pouco com isso. há muito tempo que não ando de bicicleta, mas gosto de andar de bicicleta. não quero ter filhos, dar a vida é dar a morte também, nem penso em adotar. acho que gente comportada é chata. acho que determinadas certezas, ou certezas demais, tornam-se chatas, sofrem de dores lombares. quem pensa estar sempre certo, está equivocado, não vai além das bordas, prefiro amolecer as dobras transbordando dúvidas e assim expandir a alma para que nela caiba mais mundo. admiro quem busca quebrar determinadas antigas rígidas estruturas do senso comum. sempre pensei no porquê de as pessoas terem dificuldade em elogiar e facilidade em criticar negativamente, algo que, acredito, tem forte ligação também com a inveja. o elogio é um ato de desprendimento e de confiança em si mesmo, é preciso abrir mão do orgulho para elogiar alguém. ser agradável e querer agradar a qualquer custo são coisas distintas. penso mais sobre o futuro do que sobre o passado. não tenho medo da morte. o que virá, eu não vi, o resto é rasto. prefiro as perguntas.