23 de setembro de 2021

não se come dinheiro




por Ailton Krenak (líder indígena, ambientalista, filósofo, escritor e poeta brasileiro da etnia indígena crenaque)


Quando falo de humanidade não estou falando só Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos a baleia, tiramos barbatanas de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além da matança de todos os outros humanos que nós achamos que não tinham nada, que estavam aí só para nos suprir com roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade - que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições -, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são as sub-humanidades. Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo o que não interessa, o que sobra, a sub-humanidade - alguns de nós fazemos parte dela. 

É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra dizer: "Respirem agora, eu quero ver." Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, nós morremos. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra. 

E, se nós não estamos com nada, deveríamos ter contato com a experiência de estar vivos para além dos aparatos tecnológicos que podemos inventar. A ideia da economia, por exemplo, essa coisa invisível a não ser por aquele emblema de cifrão. Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do banco central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, qual economia deles. Ninguém come dinheiro. 

Hoje de manhã eu vi um indígena norte-americano do conselho dos anciãos do povo lakota falar sobre o coronavírus. É um homem de uns setenta e poucos anos chamado Wakya Um Manee, também conhecido como Vernon Foster. (Vernon, que é um típico nome americano, pois quando os colonos chegaram na América, além de proibirem as línguas nativas, mudavam os nomes das pessoas.) Pois, repetindo as palavras de um ancestral, ele dizia: "quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da Terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro".



Ailton Krenak
Não se come dinheiro. In: A vida não é útil. 
SP: Companhia das Letras, 2020. 

24 de agosto de 2021

24 de julho de 2021

fora, Bolsonaro, genocida e corrupto!


das cenas da tarde deste sábado: havia cerca de 150 pessoas, no máximo, passando em frente ao prédio onde moro durante a manifestação contra Boçalnaro, mas que alegria me dá saber da existência destas pessoas nesta cidade! 








8 de julho de 2021

dos registros fotográficos antigos

sempre gostei muito de fotografias, de ver e de fazer registros fotográficos, desde a época em que só era possível através das fotografias analógicas. gosto de fotografias de todos os gêneros, de todos os tipos, inclusive de algumas fotografias que muitas pessoas às vezes desprezam, fotografias desfocadas, por exemplo, mas gosto especialmente de fotografias antigas, essas imagens poéticas que nos transportam para anos passados, décadas passadas... tenho uma coleção enorme de fotografias impressas antigas, algumas estão guardadas em álbuns que foram criados como um registro de momentos de alguma viagem que eu tenha feito, por exemplo, ou de algum aniversário, de um encontro qualquer com amigos, de uma simples andança pelas ruas com o olhar atento aos detalhes, etc. outras das muitas fotografias que tenho em minha casa são de álbuns que foram criados pelos meus pais antes de eu nascer e durante alguns anos depois do meu nascimento. algumas dessas fotografias foram ficando um pouco manchadas ao longo dos anos, afinal tudo o que existe denuncia a passagem do tempo, por isso antes que o tempo deteriore ainda mais essas fotografias eu decidi fazer, com o meu telefone celular, registros fotográficos digitais desses registros fotográficos analógicos antigos. agora, com a possibilidade de serem vistos também através das telas dos computadores e dos telefones celulares (os "telemóveis", como são chamados pelos portugueses), esses registros fotográficos antigos atravessarão outras muitas décadas. 


o Chevette verde-escuro dos meus pais
sobre a rua (que ainda não era asfaltada)
do Morro do Farol (único dos morros à beira-mar
da cidade com acesso de carros),
em Torres, Rio Grande do Sul, em 1977.


de dentro do Chevette sobre o Morro do Farol.
vista para a Praia da Cal
(lugar que mais gosto em Torres),
o Morro do Meio (ou Morro das Furnas),
o Parque da Guarita,
os dois morros da Praia da Guarita
e a Praia de Itapeva.

no espelho retrovisor,
meu pai
fotografando a Praia Grande de Torres.


lagoa do Parque da Guarita
e partes dos dois morros.

minha mãe e o rio Mampituba

meu pai, voz de muitas águas.
Praia de Itapeva.

minha mãe e outras tantas águas.
Praia Grande, Santa Catarina.

meu pai sobre o gramado de algum lugar
que eu não sei qual é.
"... Find me in my field of grass
Mother Nature's son
Swaying daisies sing a lazy song 
beneath the sun..."
(Paul McCartney).

minha mãe sobre a ponte de algum lugar
que eu não sei qual é.
"Sou.
Estou.
Indefinidamente
vou."
(Violeta Formiga).

minha mãe e a "Taça", formação rochosa
situada no Parque Estadual de Vila Velha,
em Ponta Grossa, Paraná.

"... No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem..."
(Fernando Pessoa).

"Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
E também você e eu..." (Arnaldo Antunes).
e o meu pai também. 

"- É a hora de vos embriagardes! 
Para não serdes escravos martirizados do Tempo,
embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar!
Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!"
(Baudelaire).

... entre a matéria e o impalpável,
a convivência é uma arte
- e a arte também
é indômita, espinhosa.
não sou unilateral.
assumo minhas sombras:
em cada um de nós
brilha um sol por dentro
e há também o escuro
sombrio das madrugadas.

Jane posando para o Tarzan.

minha mãe grávida do meu irmão
parecendo levitar.

"... a imagem colorida de Gramado."
minha mãe e meu irmão em 1979.

na nossa antiga casa,
meu irmão me segurando
enquanto eu tentava caminhar.
"Meu quintal é maior do que o mundo."
(Manoel de Barros).

"Infância - A vida em tecnicolor."
(Mario Quintana).

eu olhando para o meu irmão
em algum domingo
entre 1985 e 1986
na Praia de Itapeva.
"Há na memória um rio onde navegam
os barcos da infância..."
(José Saramago).


eu e a motoca.

minha irmã em um Carnaval
dos anos 90. 

fazendo pose.
"Já viram a flor do lírio
como é linda, linda, linda?
Pois bem, os olhos dela
são mais lindos,
muito mais ainda..."
(Luiz Gonzaga).

minha irmã e eu na Praia de Itapeva em 1994.
"... O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança..."
(Fagundes Varela).


eu no Parque da Guarita em 1997.
"caminante, no hay camino, se hace camino al andar."
(Antonio Machado).

22 de junho de 2021

"Falso Brilhante"


na casa em que vivi na minha infância havia uma sala de música, uma sala onde ouvíamos música, que era um dos lugares da casa em que eu mais gostava de estar. havia nessa sala uma espécie de sofá de alvenaria com algumas almofadas por cima, uma vitrola e muitos, muitos discos. eram vinis com músicas de todos os tipos, vinis de bandas de rock (brasileiras e de outros países, muitos vinis dos Beatles, banda que meu pai sempre gostou, Led Zeppelin, Pink Floyd, Queen, etc.), de música pop e principalmente vinis de música brasileira, inclusive a incrível coleção da Abril Cultural chamada Nova História da Música Popular Brasileira, com vinis de parte da obra de diversos artistas brasileiros, por exemplo (em desordem alfabética): Dorival Caymmi, João Bosco e Aldir Blanc, Lupicínio Rodrigues, Pixinguinha, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Assis Valente, Ary Barroso, Lamartine Babo, Paulinho da Viola, Cartola, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Baden Powell, Ataulfo Alves, Jorge Ben, João do Vale, Zé Kéti, Geraldo Vandré, Monsueto, Martinho da Vila, Adoniran Barbosa, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Moraes Moreira, Novos Baianos, Raul Seixas, Dolores Duran, Tito Madi, Rita Lee, Mutantes, Secos & Molhados, Jards Macalé, Luiz Melodia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil e muito mais.

dentre essa enorme coleção de discos que havia naquela sala da minha antiga casa, alguns chamavam mais a minha atenção, às vezes podia ser por causa da capa, pelas fotografias ou pelas palavras escritas nos encartes... e um desses, que por todas essas razões despertou a minha curiosidade de uma forma especial, era o álbum "Falso Brilhante", da Elis Regina, que foi lançado em 1976, cinco anos antes de eu nascer. naquela época em que eu comecei a prestar atenção aos álbuns que havia naquela sala, o primeiro impacto que tive com o "Falso Brilhante" foi através da capa, dos desenhos da capa, dos nomes das músicas e do nome da cantora, inclusive pela forma e pelas cores das letras, e depois, com o passar do tempo, o que começou a me impactar mais profundamente sobre esse álbum foi a voz daquela cantora. havia, na minha percepção, um tipo de força naquela voz, mesmo quando parecia cantar algumas músicas com mais suavidade, uma força que se destacava entre as outras vozes femininas que eu ouvia através daqueles vinis. não era apenas uma questão de técnica vocal, ou de timbre, era principalmente por causa dessa força que eu podia sentir através do som daquela voz, especialmente quando eu ouvia a música Como Nossos Pais, do Belchior, que foi outro desses artistas que mais chamaram a minha atenção através dos vinis daquela coleção, principalmente por causa do álbum Alucinação, também lançado em 1976.

Como Nossos Pais se tornou, então, uma música com muitos significados para mim, uma música que ouvi em diversos momentos da minha vida e que hoje em dia me faz ter muitas lembranças quando ouço ou simplesmente quando penso nela. lembro, e só de lembrar é como se eu pudesse sentir outra vez o calor daquele momento, de um domingo em que eu estava na praia de Itapeva com a minha família, meus pais e meus irmãos, eu com um pedaço de melancia nas mãos, e de repente começar a tocar Como Nossos Pais, na voz da Elis, no rádio do carro em um volume alto. muitos anos depois, quando eu já estava morando sozinho em Porto Alegre, voltei a ouvir esse álbum da Elis e muitos outros daquela coleção que eu levei comigo, época em que comecei a comprar álbuns da Elis e de outras cantoras e cantores da música brasileira. eu não pensava, durante a infância, que enquanto meu pai ouvia aqueles discos todos eu também estava de algum modo absorvendo aquelas músicas em algum lugar dentro de mim. "Falso Brilhante", por exemplo, com certeza não teria hoje para mim o mesmo significado se eu não tivesse ouvido o disco na minha infância, mas para além do que ele representa hoje para mim, tornou-se um dos discos mais apreciados da vasta discografia da Elis.

o disco "Falso Brilhante", que foi gravado em apenas dois dias durante as folgas das apresentações de um espetáculo homônimo que misturava influências circenses e uma forte carga política em plena ditadura militar (e que permaneceu 14 meses em cartaz em São Paulo), contém algumas pérolas da música: além de Como Nossos Pais, a primeira música do disco, há outra composição de Belchior, que eu gosto muito, a versão rock de Elis da música Velha Roupa Colorida, e também uma gravação de Gracias a la Vida, de Violeta Parra (que, para mim, é uma das músicas mais bonitas que existem), e de Los Hermanos, música do grande compositor e cantor argentino Atahualpa Yupanqui, e de Tatuagem, de Chico Buarque. por essas cinco músicas o disco já merece o imenso valor, para mim, que ele tem, mas há também a clássica Fascinação, versão de Armando Louzada de uma canção que foi composta no princípio do século XX, Quero, de Thomas Roth, e Um por Todos, Jardins de Infância e O Cavaleiro e os Moinhos, três músicas compostas por João Bosco e Aldir Blanc. "Falso Brilhante", esse disco emblemático de Elis, é uma obra-prima da música brasileira.

***

Los Hermanos

yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
en el valle, en la montaña, en la pampa y en el mar
cada cual con sus trabajos, con sus sueños cada cual
con la esperanza delante, con los recuerdos detrás
yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
gente de mano caliente, por eso de la amistad
con un lloro pa' llorarlo, con un rezo pa' rezar
con un horizonte abierto que siempre está más allá
y esa fuerza pa' buscarlo con tesón y voluntad
cuando parece más cerca es cuando se aleja más
yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
y así seguimos andando curtidos de soledad
nos perdemos por el mundo, nos volvemos a encontrar
y así nos reconocemos por el lejano mirar
por las coplas que mordemos, semillas de inmensidad
y así seguimos andando curtidos de soledad
y en nosotros nuestros mortos pa' que nadie quede atrás
yo tengo tantos hermanos que no los puedo contar
y una hermana muy hermosa que se llama Libertad.


Atahualpa Yupanqui



14 de junho de 2021

o pequeno pássaro


no dia 3 de março deste ano, por volta das 5 horas da tarde, eu havia acabado de deitar no chão do meu quarto com o meu cachorro quando ouvi o som de um pássaro que parecia estar bem próximo da porta da sacada. pensei, em um primeiro momento, que fosse apenas mais um dos muitos pássaros que constantemente pousam sobre a sacada do meu quarto e que logo voam quando eu me aproximo. abri apenas um pouco a porta, com calma, e vi através da fresta: um pequeno pássaro parado no chão da sacada. ele não se movimentava, mas seguia emitindo o mesmo som, como se estivesse querendo dizer algo. abri um pouco mais a porta e fiquei atrás dela durante uns dois ou três minutos apenas observando aquele pequeno pássaro que parecia já ter notado a minha presença e sem se assustar com isso. comecei a ter a forte impressão de que aquele pequeno pássaro estava ali mais me observando do que sendo observado por mim.

depois de mais alguns minutos, abri a porta totalmente e me aproximei daquele pequeno pássaro, que seguiu parecendo não ter medo da minha aproximação e ainda emitindo seu som como se quisesse dizer algo. pensei, então, que ele poderia estar de algum modo machucado, com algum problema nas asas, ou em alguma outra parte do seu pequeno corpo, e o que até então era apenas um momento meu de admiração por aquele pássaro começou a se transformar em um sentimento de aflição, de preocupação, afinal eu não sabia o porquê de aquele pequeno pássaro, apesar de aparentemente bem, estar imóvel daquela maneira e emitindo aquele som há alguns longos minutos. pensei, também, que ele pudesse estar apenas querendo descansar por um tempo sobre o chão da sacada do meu quarto e que em algum momento ele iria voar, ir embora.

peguei um pouco de água com um copo e joguei com calma a água no chão para que ela escorresse até perto de onde ele estava, imaginei que a água, se ele realmente bebesse um pouco ou mesmo que se apenas molhasse o bico, poderia fazer algum bem para ele. quando a água começou a se aproximar dele eu vi que ele ficou curioso olhando de lado o caminho que a água fazia enquanto escorria pelo chão e em seguida ele começou a dar umas bicadas no chão para beber a água. pensei que ele pudesse estar com fome também e decidi procurar algo para ele comer, ainda que naquele momento eu não fizesse ideia do que poderia servir de alimento. vi sobre a mesa da cozinha o pão integral e decidi pegar um pequeno pedaço de uma das fatias e fazer farelo, que coloquei ao lado do pequeno pássaro e que ele começou a comer no mesmo instante. por um momento, senti um pouco de alívio ao pensar que eu estava de algum modo matando a sede e a fome daquele bichinho.

fiquei mais alguns minutos observando o pássaro e depois voltei para dentro de casa. deixei a porta apenas um pouco aberta, com uma pequena fresta, para que meu cachorro não saísse, e fui fazer outras coisas. de vez em quando eu voltava para o quarto e observava por entre a fresta da porta para ver se o pequeno pássaro ainda estava lá, e em todas as vezes ele estava no mesmo exato lugar. a noite chegou e depois de algum tempo o pequeno pássaro foi para o outro lado da sacada, ainda em pé sobre o chão, e ficou como se estivesse com o bico encostado na parede. pensei que ele poderia estar dormindo, talvez ainda descansando, qualquer coisa assim, e segui de vez em quando observando aquele pequeno pássaro pela fresta da porta, pensando ainda que talvez em algum momento ele iria voar, ir embora. 

tenho o costume de deixar a porta da sacada aberta para que meu cachorro saia sempre que ele sentir necessidade, mas como o pássaro não saía de lá e ao mesmo tempo percebi que meu cachorro já poderia estar querendo sair, decidi pegar uma caixa de sapatos, botar um pano fino sobre o fundo da caixa, pegar o pequeno pássaro e colocá-lo com calma dentro da caixa sem tampa que deixei sobre uma cadeira que há na sacada. pelas horas seguintes, até o momento em que fui dormir, observar aquele pequeno pássaro se tornou, então, quase uma obsessão para mim, quase como se eu tivesse que cuidar de um bebê recém-nascido dormindo em um berço. antes de ir dormir, já bem tarde, observei mais uma vez o pequeno pássaro e ele ainda estava na mesma posição dentro da caixa, como se ainda estivesse dormindo. toquei levemente em suas asas, como se fizesse um carinho com a ponta do dedo, e fui deitar para tentar dormir, apesar da minha ansiedade por não saber exatamente o que estava acontecendo com aquele pássaro e se ele ficaria bem até o momento em que eu acordasse, se ele ainda estaria ali... 

pela manhã, a primeira coisa que fiz depois de acordar foi levantar e ir olhar dentro da caixa. o pequeno pássaro estava deitado, morto. senti naquele momento uma tristeza como se eu tivesse perdido um bicho de estimação que há muito tempo fazia parte da minha vida, e pelos minutos seguintes vários pensamentos começaram a ecoar na minha mente: será que esse pássaro talvez tivesse alguma noção de que iria morrer e apenas por coincidência acabou pousando exatamente na sacada do quarto de uma pessoa que ama pássaros? com tantas sacadas para ele pousar na cidade, na avenida em que moro, e até mesmo no prédio, será que foi apenas uma espécie de acaso da vida ele ter pousado exatamente na minha sacada e quase no mesmo momento em que eu havia deitado no chão ao lado da sacada? será que esse pequeno pássaro estava apenas procurando algum lugar tranquilo em que pudesse passar suas últimas horas de vida ou quis, também, de algum modo, com o que lhe restava de vida até mesmo me dizer algo sobre a minha própria vida? por que não? algumas horas depois, quando a noite já havia chegado, fui com o meu cachorro procurar algum lugar em que eu pudesse enterrar aquele pequeno pássaro.

para além das muitas perguntas que me fiz naquele momento em que encontrei o pequeno pássaro morto, e que às vezes ainda me faço desde aquele dia, sei, porque sinto, que as horas em que aquele pequeno pássaro esteve ao meu lado me transformaram de algumas maneiras através da minha admiração por ele, dos meus olhos que se encheram daquela beleza pura, afinal, como Manoel de Barros escreveu em um poema, "é no ínfimo que eu vejo a exuberância".



6 de junho de 2021

das perguntas




o que é acordar para a vida? quem, na verdade,
está acordado ou acordada para a vida?
quem despertou? acordar para a vida
é abrir os olhos todos os dias, nas manhãs,
com o som de um despertador
para ir bater o ponto do trabalho
e depois, algumas horas depois,
bater o ponto outra vez, sempre igual,
como um autômato, um robô, todo mês?
acordar para a vida é simplesmente acordar
para "ganhar a vida"? e as tantas pessoas
que estão apenas "ganhando a vida"
têm alguma noção do quanto de vida
ao mesmo tempo podem estar perdendo também?
ter estado acordado ou acordada para a vida
é ter acumulado um tanto de posses e dinheiro
para chegar próximo ao fim e só (talvez), então,
lembrar que, para tudo e para todos, o que restará
é o que levará de um tempo de decomposição?
quem, na verdade, enquanto teve uma vida
esteve acordado ou acordada para essa vida?
foi quem manteve por anos algumas relações
somente por não conseguir, ou não saber, ser só?
quem é que sabe acordar para também ser só?
quem é que sabe acordar para também só ser?
quem é que acorda para ser mais do que ter?
estão acordadas para a vida
as tantas pessoas que esquecem
que a natureza não precisa de nós
e que nós é que precisamos dela?
estão acordadas para a vida
as tantas pessoas que só sabem nutrir
a flor de seus próprios umbigos?
estão acordadas para a vida
as tantas pessoas que, sob um teto 
de milhares de nuvens e estrelas,
observam apenas a vida alheia
ou que, para além do valor
que para si mesmas se dão,
medem o valor das outras pessoas
pelo que elas têm e não pelo que elas são?
estavam acordadas para a vida (que vida?)
as tantas pessoas que votaram
em um homem boçal, egoísta e pernicioso
para presidente do país?
estão acordadas para a vida (que vida?)
as tantas pessoas que se calam
diante dos tantos horrores do mundo
e que, na intenção de agradar pais,
supostos amigos, gregos e troianos,
são, através de seus silêncios,
coniventes com as injustiças?
o que é acordar para a vida?
afinal, enquanto houver vida, quem, na verdade,
estará acordado ou acordada para essa vida?





imagem: Árbol de la vida (1963), 
tela bordada por Violeta Parra

13 de fevereiro de 2021

irmandade / estrelas




Irmandade

Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.



Hermandad

Soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.



Octavio Paz (1914 - 1998), 
poeta, ensaísta e tradutor mexicano.


***



estrelas
para mim
para mim
estrelas
são para mim
estrelas para mim
estrelas
estrelas
para quê?
para quê?
para quê?
estrelas para mim
só para mim
para mim
para mim
para mim
e a treva entre as estrelas
só para mim.



Arnaldo Antunes e Sérgio Britto
voz: Adriana Calcanhotto
no álbum A Fábrica do Poema, de 1994.


***


imagem: Edvard Munch

8 de fevereiro de 2021

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: "Há metafísica bastante em não pensar em nada"


(o Sol e o rio Mampituba.
"Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.")


V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas, 
Mas que melhor metafísica que a delas, 
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

<<Constituição íntima das coisas>>...
<<Sentido íntimo do Universo>>...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, 
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



Fernando Pessoa
"Ficções do interlúdio: Poemas completos de A. Caeiro"
In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

5 de fevereiro de 2021

Não: não digas nada




Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê! 
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.



poema de Fernando Pessoa
musicado por João Ricardo
voz: Ney Matogrosso
no álbum Secos & Molhados II, de 1974.

24 de janeiro de 2021

o poço

(da sacada do quarto)


A moeda do Acaso
cai tão fundo
no Poço dos Destinos
que vivemos descolados
do viver do outro,
como num contrato de comportamento.
O milagre do viver nos entorpece.
Então a notícia da doença de um amigo,
o convite para a missa de um outro,
um susto, um alarme, uma suspeita
nos vareja no rosto uma aragem de morte.
Às vezes choramos,
ficamos desorientados
mas abrimos os olhos,
levantamos os ombros e seguimos em frente.
A gente é assim.
Como não guardo a esperança
de um encontro feliz
ao final das eras, 
valorizo o tempo do aconchego,
abraço, beijo, conforto, aceito, sirvo. 
Armo como posso a teia do afeto,
enquanto estamos perto
enquanto estamos vivos. 



Abel Silva
"O poço". in: Fôlego. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018.

21 de janeiro de 2021

Solilóquio de Nina Simone

Habitou-me um deus espesso.
Sangue cor de fígado.
Veneno talhado, macerado e amargoso. 
Fez morada em cada célula. 
Nos alvéolos, nas entranhas, sob as unhas.
Expande a veia do pescoço.
Sangra pelas gengivas.
Lateja nas têmporas e nos pulsos. 
Planta arrancada da terra africana,
deita suas raízes fundas de baobá
e traz gosto de lama à boca. 
Tem sabor atávico a relembrar
o lodo de que se originou o homem.

Habitou-me um deus exigente,
que me fere e exaspera.
Que espezinha o que eu era.
Que fala o que eu não pensara
e, dizendo-me ao contrário, 
faz-me gostar do calvário 
que, às cegas, eu criei. 
Nomeio que não tem nome:
Raio de Iansã, trovão, ciclone,
Sopro de Orixá, c'est moi
Nina Simone. 


Donizete Galvão (1955 - 2014)


***



16 de janeiro de 2021

Colapso em Manaus não é acidente, mas fruto do projeto bolsonarista

Parentes assistem a funeral de vítimas da covid-19 
no Cemitério Nossa Senhora Aparecida
em Manaus, Amazonas
imagem: Michael Dantas - AFP



por Leonardo Sakamoto (do UOL)



Manaus está sem oxigênio em hospitais. Pacientes estão sufocando. 

O aumento súbito na demanda por leitos de UTIs para covid-19 e por oxigênio ocorre duas semanas após as festas de final de ano. Nesse período, o presidente da República, mais uma vez, plantou irresponsabilidade ao incentivar as pessoas a ignorarem o isolamento social e a aglomerarem-se. Segundo ele, medo da covid é coisa de "maricas" e "todo mundo morre um dia". O impacto negativo de seu governo consegue superar o de qualquer mutação do coronavírus. 

Wilson Lima (PSC), governador do Amazonas, anunciou, nesta quinta (14), toque de recolher noturno para reduzir o número de casos, que também já levou a novo colapso nos cemitérios. Em dezembro, ele voltou atrás em um decreto com restrições a atividades não-essenciais, que poderia ter salvado vidas, após pressão de empresários e deputados bolsonaristas. 

A coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, apontou que administradores dos hospitais da capital amazonense e pesquisadores confirmam o atual cenário de terror. Parentes compram cilindros individuais para tentar salvar familiares e pessoas com outras doenças que dependem do insumo também estão sendo afetadas. O que será de recém-nascidos que precisam de respiradores, por exemplo?

O governo federal está transferindo pacientes para outros Estados, em caráter emergencial. Há gente passando vergonha e batendo palma para o que eles chamam de "logística de guerra" nas redes sociais, quando isso, na verdade, é uma derrota que poderia ter sido evitada se tivéssemos governo. Temos um vácuo sentado no Palácio do Planalto. 

Afirma-se que o suprimento de oxigênio acabou devido a um salto inesperado no número de casos. Não, não foi surpresa. Infectologistas, epidemiologistas e cientistas apontavam que a redução no isolamento, incentivada por autoridades como o presidente, cobraria um preço altíssimo no meio de janeiro. Inesperado é um meteoro destruir uma cidade de 207 mil habitantes. O que estamos vendo no Brasil é projeto. 

Após deixar milhões de testes para covid-19 vencerem em um depósito do governo em Guarulhos (SP) e apresentar um plano picareta para a distribuição da vacina, o ministro da Saúde e especialista em logística (sic), general Eduardo Pazuello, vê pacientes morrerem sufocados em Manaus por falta de oxigênio. 

Pazuello não surgiu de geração espontânea a partir de uma farda vazia num armário. Foi Jair Bolsonaro que o colocou lá. 

Medalhista na modalidade Arremesso de Responsabilidade à Distância, o presidente correu para jogar a culpa apenas nas costas do governo estadual e da prefeitura local. Na terça (12), afirmou que ambos deixaram acabar o oxigênio e que Pazuello tinha ido à capital para resolver a situação. Medalha de ouro. 

Apesar de ter entrado para o anedotário mundial, Maria Antonieta, rainha da França no século 18, nunca disse "se o povo não tem pão, que coma brioches". Também não há registro de que Pazuello tenha dito: "Se o manauara quer oxigênio, que engula cloroquina". Mas foi o que, de fato, fez. 

Em um dos lances mais bizarros desde que começou a pandemia (e olha que a competição é acirrada), o Ministério da Saúde pressionou a Prefeitura de Manaus a distribuir hidroxicloroquina e ivermectina, remédios usados contra malária, lúpus e infestação por vermes, como tratamento precoce para a covid, como informou o Painel, da Folha de S.Paulo. Poderia ter garantido o estoque de oxigênio ou viabilizado uma vacina, mas optou por forçar para que aceitassem "feijões mágicos".

Se o governo federal, desde o início da pandemia, tivesse assumido a articulação no combate à doença, saberia quando Estados e municípios precisariam de insumos. Assim, problemas seriam evitados e pessoas não morreriam. Transportar pacientes agora é corrigir um erro, não mostrar competência. Preferiu abraçar o vírus como um velho amigo. 

O presidente não cansa de repetir que o Supremo Tribunal Federal o deixou da mãos atadas por entregar o combate à pandemia a governadores e prefeitos. Mentira. O STF afirmou que eles também têm poder para definir medidas, como quarentenas, não que o governo federal não tinha que se envolver. Vale lembrar que, se dependesse de Bolsonaro, não haveria quarentenas. E, com isso, teríamos mais mortos. 

É um atestado de incompetência carimbado na testa o fato de que o alerta da falta de oxigênio seja tanto a asfixia de doentes quanto a tortura física e psicológica de profissionais de saúde, obrigados a ventilar manualmente pacientes para afastá-los da morte. 

O salto de internações e óbitos em Manaus não é uma situação isolada, portanto, mas o prenúncio de que vem por aí uma evitável colheita de óbitos. 

Há nuvens escuras no horizonte. Parece uma tempestade.

14 de janeiro de 2021

Saramago



A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá 'que coisa tão cruel'. 

Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?

Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 

Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 


José Saramago, in Diálogos com José Saramago (1998)


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Produzimos uma Cultura de Devastação

Todos os anos exterminamos comunidades indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras palavras das nossas línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. 

Konrad Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser humano. Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um projecto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece, a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade de esperança. Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder económico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstractas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efémeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade...

José Saramago, in Revista Universidad de Antioquia (2001)


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Não Calar

Há uma regra fundamental quando se vive como nós estamos a viver - em sociedade, porque somos uns animais gregários - que é simplesmente não calar. Não calar! Que isso possa custar em comunidades várias a perda de emprego ou más interpretações já o sabemos, mas também não estamos aqui para agradar a toda a gente. Primeiro, porque é impossível, e segundo, porque se a consciência nos diz que o caminho é este então sigamo-lo e quanto às consequências logo veremos.

José Saramago, in Uma Longa Viagem com José Saramago (2009)


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imagem: José Saramago portrait, de Elia Bonetti

9 de janeiro de 2021

os cavalos e a neve

há muito tempo que gosto muito de fotografias, especialmente de fotografias da natureza, dos bichos, e mais especialmente ainda da natureza com seus bichos. em tempos de profusão e banalização de selfies, em que as pessoas têm seus olhares cada vez mais direcionados para si mesmas, parece estar se tornando mais inusitado ver gente com verdadeiro interesse em fotografar também o que está ao seu redor, para além do próprio umbigo (eu já ouvi, por exemplo, algum tempo atrás, uma pessoa dizer que não via "graça" em "fotografia em que não aparece gente"). minha irmã, que mora no Colorado, nos EUA, em um lugar com montanhas lindas que ficam cobertas de neve nesta época do ano, costuma me enviar fotografias de lá: do céu quando ele parece estar pedindo para ser fotografado, de tão lindas as cores e as nuvens que se formam no momento (e porque ela sabe que eu gosto de fotografias do céu), dos cachorros que vivem com ela, dos diversos bichos que ela observa pelos lugares por onde passa, etc. alguns dias atrás, no caminho para o lugar onde trabalha, ela passou, como de costume, por alguns cavalos que ficam em um enorme terreno com arame ao redor. ela já havia me mandado algumas imagens, inclusive em vídeos, desses cavalos, que são muitos e aparentemente bem tratados (ela às vezes para e os observa enquanto é observada por alguns deles), mas dessa vez as imagens ficaram tão bonitas, tão singularmente bonitas, que senti vontade de postá-las aqui no blog:






1 de janeiro de 2021

26 de dezembro de 2020

das maiores importâncias


(imagem: ONG Olhar Animal)


uma das coisas mais difíceis da vida, na minha opinião, é conseguir manter algum tipo de humor mais constantemente leve sem ser uma pessoa ignorante, sem ignorar os horrores que acontecem diariamente pelo mundo - porque manter alguma leveza sendo ignorante sobre o que nos rodeia é fácil, é cômodo, basta ser egoísta, viver se importando apenas em nutrir a flor do próprio umbigo e o resto que se foda, não é à toa, afinal, que as pessoas mais ignorantes quase sempre são aparentemente mais felizes, com uma positividade que muitas vezes acaba se tornando tóxica. mas como ser leve o tempo inteiro, como algumas pessoas dizem ser, ou fazem de conta que são, se também o tempo inteiro acontecem barbaridades pelo mundo? 

além de diariamente receber e ler e-mails da ONG Olhar Animal, que atua na propagação de informações, organização de eventos, campanhas, mobilizações, proposições legislativas e busca a conscientização e sensibilização das pessoas para os interesses dos animais e para a necessidade e o dever moral de defendê-los, também costumo assistir a alguns vídeos de alguns canais do YouTube que buscam essa conscientização das pessoas sobre o bem-estar animal. muitos desses e-mails e vídeos contêm cenas horríveis (de casos de animais que foram cruelmente maltratados, abandonados, atropelados, estuprados, etc.), mas eu os leio e os vejo porque sei que, pelo menos em grande parte dessa imensa quantidade de casos, há um desfecho feliz para esses bichos. são cenas que, em um primeiro momento, fazem com que eu pense e sinta que resta cada vez menos, para mim, a possibilidade de seguir mantendo a tal "fé na humanidade". mas se há pelo mundo inteiro muitas pessoas capazes das piores crueldades contra os bichos, também existem, sim, muitas pessoas dispostas a tratá-los com respeito e com a maior demonstração de afeto possível. 

se não é possível "salvar o mundo", "salvar os animais das mãos dos humanos", como escreveu Hilda Hilst na crônica "Compaixão também é política" (escrita em 1993 e compartilhada aqui no blog algum tempo atrás), convém pelo menos tentar ser um(a) canalha a menos, ou menos canalha, já que canalhas todos somos muitas vezes ao longo de nossas vidas, e de algum modo valorizar e enaltecer as pequenas vitórias e não ficar apenas lamentando os horrores do mundo. 

aos que puderem e quiserem de algum modo colaborar, deixarei aqui alguns links (qualquer tipo de colaboração é muito importante e pode ajudar alguns animais, quem quiser pode compartilhar esta postagem, inscrever-se nos canais citados, divulgar as ONGs, ser voluntário, adotar algum animal ou fazer doações através de contas bancárias, procurem as informações sobre como fazer doações através desses links, qualquer valor doado será útil):


ONG Olhar Animal - em defesa dos seres sencientes: https://olharanimal.org/

"Senciência é um conceito chave para a discussão ética sobre os animais. Trata-se da junção de dois outros conceitos: o da sensibilidade e o da consciência. Sencientes são organismos vivos que, além de apresentarem reações orgânicas ou físico-químicas aos processos que afetam seu corpo (sensibilidade), percebem estas reações como estados mentais positivos ou negativos (consciência). É um indício de que naquele ser existe um indivíduo (um eu) que vivencia e experimenta as sensações, diferenciando-o assim de coisas vivas, como as plantas. 

A capacidade de sofrer ou de desfrutar sensações torna este seres dignos de igual consideração moral em relação aos humanos, dada a extrema relevância desta condição. E a busca por esta igual consideração é a razão fundamental para a existência do Olhar Animal e suas ações pelo fim da exploração dos animais."

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ANDA - Agência de Notícias de Direitos dos Animais
https://www.anda.jor.br/

"Sob a perspectiva dos direitos animais e da sustentabilidade, produzimos conteúdo informativo relevante, preciso e qualificado, que convida à reflexão, à interação e a uma atitude de transformação, individual e coletiva, para a construção de uma nova sociedade em seu convívio entre as espécies - alinhada ao novo paradigma emergente, que passa a enxergar o mundo como uma rede de fenômenos interconectados e interdependentes.

Atuamos de forma multidisciplinar e em rede com os nossos públicos e parceiros, conectados com os novos valores de um mundo que privilegia a sustentabilidade, a inclusão e horizontalidade, o compartilhamento, a colaboração e a parceria."

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"Olá, meu nome é Marcelo, mas sou conhecido como 'Marcelinho protetor' devido ao meu trabalho com animais abandonados desde meus tempos de criança. Mantenho um abrigo para animais e hoje abrigo cerca de 200 animais (70 gatos e 130 cães). Também faço um trabalho de conscientização e controle populacional de animais, com mutirões de castração e educação infantil, na Comunidade do Sapo, favela da Zona Norte de São Paulo, onde morei durante seis anos. 

Amigos se uniram e me ajudaram a comprar a chácara em que fiz meu abrigo, aqui em Mairiporã. No começo, abrigava os animais dentro da única casa construída no terreno. Com o tempo, sempre contando com doações de pessoas que conhecem meu trabalho, construí algumas baias para os cães, um gatil e uma enfermaria para atendimento emergencial. 

Hoje, o abrigo está lotado. Com ajuda de doações luto todos os meses para cuidar da saúde, alimentar e dar abrigo a esse animais 200 animais, além de manter o abrigo funcionando. Atualmente estou finalizando a construção de um novo gatil para poder separar os gatos adoentados para que não contaminem os que estão saudáveis - e preciso reformar o canil e construir uma área de quarentena, o que não é simples, pois a chácara em que se encontra o abrigo é em declive e demanda mão de obra especializada e mais cara. No momento, nem tenho verba para isso. 

Idealizei o projeto Bichos do Gueto e, semanalmente, com a ajuda de alguns voluntários, realizo eventos de adoção de cães e gatos em diferentes pet shops em São Paulo, quando tento conscientizar a população de que castração, vacinação, vermifugação e o não abandono dos animais é também uma questão de saúde pública. Todos os animais doados são vermifugados, castrados e vacinados."

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Anjos da Minha Vida - Resgates (canal no YouTube)

"Canal de ativismo e proteção animal da ONG Anjos da Minha Vida - Resgates, onde o ativista, escritor, jornalista e bacharel em Direito Eduardo Roz e a ativista, professora e bióloga Gracielle Beatryz mostram o dia a dia dos resgates de animais em maus-tratos. 
Inscreva-se no canal e sinta a emoção em salvar vidas."

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FundaBolivar (canal no YouTube)

"A pesar de ser el proyecto de protección animal más importante de Venezuela, estamos en riesgo de desaparecer. Acudimos a ti para que nos ayudes. Hay muchas maneras en que nos puedes ayudar a seguir salvando vidas. 
También te invitamos a que visites nuestra página web: https://www.fundabolivar.org/"

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El Dodo (canal no YouTube)

"El Dodo es una comunidad para todos los que aman a los animales y se preocupan por su bienestar. Nuestro objetivo es brindar historias y videos relacionados con los animales que sean emocionantes y visualmente irresistibles y que se puedan compartir con la mayor cantidad de personas posible para ayudar a que el cuidado de los animales sea una causa viral. Queremos que nuestros lectores se enamoren de los animales, se diviertan y se entretengan mientras lo hacen, y se sientan capacitados para ayudar a los animales necesitados. El Dodo es para todos los que aman a los animales y quieran difundir ese amor y hacer del mundo un mejor lugar para ellos."